Exposição 1983.08 – Canidé: Canaã Nordestina. Um espetáculo de Fé – 27/10/1983
(Transcrito do Catálogo)
A terra é a mulher castigada que já não fecunda. Apartada de todas as chuvas e bênçãos, recolhida em si mesma, racha-se em longos caminhos onde os rastros vagueiam à procura e à espreita de escassos humores e acalantos. E as trilhas que abrigam fugitivos e emboscados cobrem-se de espinheiros e carcaças, filhos mortos, sementes abortadas, poeira e assombração. A Terra é o imenso regaço da esperança, suporte do arco-íris, guardiã as enchentes e vazantes, pasto da criação, chão de estrelas e lumes, cercado de borregos, poleiro de canários e candeeiros, terreiros de reisado e de baião. A Terra é mãe do homem, mão-de-santo, é filha deles todos, companheira, todo começo e fim, bola do mundo, giro na imensidão. O Santo, o Homem e a Terra em desalinho, numa folia enorme, epifania, recomeço, reconciliação. Telírica elegia onde o artista constrói, de dentro para fora, sua festa de imagens no maior espetáculo de fé que já nos foi dado assistir e apreciar. Pintar com as cores do povo: as cores de homenagem são fortes, mesmo berrantes, portanto, vibrantes nas áreas de contraste. Os olhos acostumados ao colorido de “bom gosto” dificilmente aceita a combinação do verde com o vermelhão (cores complementares); já o povo livre de preconceitos colorísticos e estáticos, lança mão daquilo que esteja mais perto de sua força emotiva e instintiva, acontecendo o mesmo quanto ao olfato onde os perfumes sugerem as fragrâncias selvagens, fácil de notar nas lojas de produtos religiosos como é o caso das casas de umbanda etc… e nos animados forrós, quando na dança o suor se mistura com a alfazema de garrafa de cheiro ou o perfume “Royalbriá”. No Nordeste, principalmente nas épocas de seca, a luz do sol é diluente, ou seja, todas as cores tendem a um cinza-amarelado à medida que se distanciam da costa; daí a necessidade da cor nos seus contrastes geralmente complementares. Nos arruamentos e vilas distantes, talvez até a falta de recursos seja sublimada pelo valor da cor, através das bizarras fachadas e nos minúsculos jardins onde a arrumação das plantas é livre e exuberante, nas pinturas das jangadas de tábua e nas malhas do pano de rede. Nos altares, nos andores dos festejos religiosos, tudo segue à risca do arco-íris, o mais belo fenômeno visual do espectro, o qual sempre está presente na imaginação e oferendas santificadas. “Ontem choveu que deu até arco-íris!”, coisa Divina e rara prás bandas de cá.
O Santo
São Francisco de Assis, fundador da ordem religiosa dos franciscanos. Itália-Assis 1182+1226. Filho do rico comerciante Pedro Bernardone e Joana Picá de Boulermont. Batizado a princípio com o nome de João, Bernardone resolver mudar para Francisco, rendendo homenagem à França que o enriquecera e lhe despertara a sede de nobreza. Francisco associou-se aos negócios e, depois (1206), dedicou-se inteiramente ao serviço de Deus. Viveu, a princípio, como eremita, mas rodeou-se, depois (1208/1209), de discípulos a viver com ele na pobreza evangélica. Em 1210, o Papa Inocêncio III aprovou a regra franciscana. Em 1212, com Santa Clara, Francisco fundou a Ordem das Clarissas. Doente, assistiu ao IV Concílio de Latrão e obteve a colocação de uma indulgência especial, dita da “Porciúncula”. Em 1220 regressa do Egito a fim de providências modificações introduzidas na ordem por seus vigários; pediu demissão do ministério geral, mas continuou sua prédica fraternalista. Em 1221, fundou a Ordem Terceira Franciscana: modificou sua regra duas vezes a pedido de Roma. Em 1224, recebeu em Alverne os estigmas do Cristo. Já moribundo, compôs o poema (Cântico ao Sol). Sua lenda revive nos Fioretti e nos afrescos de Giotto (Assis). Tendo vivido uma existência de profunda compreensão à natureza, a Igreja Católica, no ano de 1225, enriquecendo e ampliando seu já populoso santuário, resolvei canonizá-lo como São Francisco de Assis. – No meio do sertão cearense, em Canindé, recebeu a consagração popular de São Francisco das Chagas de Canindé, festejando a 4 de outubro.
A fé
O sertão, sinônimo de abandono crônico pelo poder, onde a falta de tudo, principalmente de chuva, é fonte de negociações políticas ou de “dramáticas reivindicações” (!)… O caos dos desastres econômicos gerador de desespero deságua no oceano da violência e do medo, em que nas águas turvas e ameaçadoras a Fé é uma ilha de esperança para os que não querem se vingar da violência institucionalizada com violência desesperada. Enquanto os senhores do poder podem e não querem, os senhores nativos não podem mas querem, pelo menos, o único e essencial direito, o de viver em sua terra. Não acreditamos mais nos irônicos e prosaicos paliativos estatais, depositam toda a esperança no Santo “NÓIS NUM SABE NEM REZÁ PRO SANTO MAS ELE SABE LÊ O NOSSO CORAÇÃO” ou “NUM SINCOMODE, ENTREGUE AO SANTO QUE ELE RESOLVE” … Esta fé instintiva e salvacionista se espalha com a poeira que vento varre da seca; tudo fica impregnado de religiosidade e de participação; o homem mergulhado nesta paixão-Fé se beatifica e com ele todas as coisas se santificam. Muito longe de uma fé racional, a “fé no santo” dispensa o intelecto; basta “sentir fé”; isto é tudo.
O Homem
A simplicidade e a sabedoria são duas coisas interdependentes que somadas naturalmente formam a razão do real viver ou do amo Êxito; ora, São Francisco de Assis nos legou este magnífico exemplo de vida, portanto, o homem simples, telúrico, tira sua sabedoria da própria natureza sem procurar entendê-la (analisá-la) mas amá-la, chegando mesmo, através do despojamento, a se identificar com o santo de Assis, haja vista as promessas serem feitas com o uso de mortalhas em forma de hábito franciscano marrom, como no estoicismo, onde o homem trata de encontrar um refúgio em si mesmo, no reduto do seu ser pessoal, a fim de escapar aos golpes da sorte e das imposições exteriores, evitando e sublimando a dor; por isso as homenagens ao querido santo, através da sua da sua imagem ou de seus símbolos diversos, propicia liberação da criatividade totêmica num profundo embasamento lírico nos altares, nos andores, nos ex-votos, nos cânticos, em cordéis, em “dramas” ou estórias de niná, etc.; São Francisco está incólume, carinhosamente enfeitado “com muita fé”. Viva o Santo!
A Terra
Canindé, no meio do sertão do Ceará, é um centro regional de peregrinação, onde está o santuário-basílica de São Francisco das Chagas. O culto remota ao início do século XVIII, quando os franciscanos, em suas viagens de apostolado pelo Norte e Nordeste, agremiaram os fiéis na Ordem Terceira de São Francisco das Chadas do Recife. Por volta de 1775, foi principiada a construção de uma igreja, à margem do Rio Canindé, cujas obras demoraram até 1796, quando se inaugurou o Santuário com a chegada da imagem do padroeiro. Em 1817 é criada a paróquia. Em 1898 o bispo de Fortaleza confia o santuário aos capuchinhos que levantaram o atual templo de 1910 a 1915. Os franciscanos da província de Santo Antônio assumem a administração em 1923, continuando até o presente. O santuário é elevado à Basílica (1925/1926). O tempo anual de romarias se estende de agosto até fins de dezembro, sendo estas especialmente numerosas durante a novena de São Francisco e preparação à festa do padroeiro, a 4 de outubro. Costumes peregrinos de origem remota ainda perduram nesse santuário, como o uso de mortalha como hábito franciscano para os romeiros e também o sacrifício de cabelo como símbolo de fecundidade-costume que remonta aos nossos antigos índios, tenso sido aos poucos assimilado e cristianizado. Durante a novena e festa, os peregrinos chegam a 35 mil por dia, e realiza-se todas as tardes com o painel do santo taumaturgo; muitos romeiros cumprem suas promessas nessa ocasião, carregando, por exemplo, pedras sobre a cabeça, andando descalços e de joelhos, com cruzes ao ombro, caminhadas de centenas de quilômetros, etc. O número de caminhões, durante os dez dias da novena, chega a 85 mil, fora outros meios de transporte.
Fortaleza, 18 de março de 1983
Maria Helena Cardoso
No princípio era o acaso que foi sendo imperceptivelmente substituído. E o verbo era a forma e a cor das ideias com que foi-se ordenando esse universo. O artista encontrou os materiais do seu canto, fez-se exato e contínuo e regeu o seu mundo de percepções e de significados: – a fé telúrica e o espírito universal de todos os santos – na mística de São Francisco de Assis; de todos os homens – no ingênuo sertanejo pagador de promessas; e de todas as terras – na mais fértil em suor e esperança, Canindé – Canaã nordestina e romeira, oscilante miragem prestes a evaporar-se no calor de seus sóis, suas rezas e seu abandono e a ressuscitar todos os anos pela festa do santo milagreiro. São Francisco de Assis não é mais o seu próprio despojamento: a vida franciscana é agora a de cada um desses homens sem água e trabalho, sem consciência social e sem identidade tangidos por qualquer força invisível e imaterial até as igrejas e as pedras, por todas as veredas – porque todos os caminhos vão a Canindé e toda marcha é uma romaria e toda promessa é uma resistência. O deserto povoa-se a cada ano de crentes e de bem-aventurados e deles é o reino dos céus o reino dos pobres, dos mansos e dos misericordiosos; o reino dos que choram e têm fome e sede de justiça, dos pacíficos e limpos de coração. A multidão de devotos sobe à montanha para ouvir o seu canto, deixar-lhe os ex-votos e sonhar todos juntos com o dia em que possuirão a terra. O Santo é Severino das Dores, José e Francisco. São todos os caboclos de todas as misturas de posseiros, índios e evangelizadores; a raça sertaneja, serrana e pescadora, os cabras da caatinga, da praia e do cerrado que castigam as mãos na enxada e no laço, na rede e na viola e cantam valentia e saudade por todos os que morreram para não ter enfim que ir embora. O Santo é o nome dado por eles a todo impulso e todo medo desconhecidos. É o que faz rezar e prosternar-se, roçar a terra e emigrar, esperar e cometer desatino; é também o que faz endoidar e fazer filho, embriagar-se enfraquecer-se e ser possuído. O Homem é aquele que se entregou à missão de construir um templo e semear entre as pedras, de falar aos animais e aos elementos e de penetrar de tal modo na natureza íntima de todas as coisas que obteve, afinal, decifrar seus mistérios e libertar-se.