Exposição 1973.02 – Retrospectiva de Aldemir Martins – 18/05/1973
(Transcrito do Catálogo)
Os trabalhos reunidos nesta exposição correspondem a diversas fases da obra de um artista plástico consagrado. Provêm na sua maioria de acervos particulares, de coleções formadas ao longo de muitos anos por velhos amigos e companheiros do artista. Muitas das telas e dos desenhos apresentados datam dos tempos da sua iniciação nos segredos das formas, do longo noviciado na província. Algumas delas, expostas ao público pela primeira vez, guardam a ternura de motivos familiares, de recordações adolescentes. A exposição não ambiciona constituir-se em retrospectiva de uma produção enriquecida por um labor contínuo, aperfeiçoado por uma dedicação exemplar votada à elaboração criadora. Ela representa, isto sim, uma homenagem do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará e da Secretaria de Cultura do Governo do Estado a Aldemir Martins, filho do Ceará, no seu cinqüentenário.
Zuleide Martins de Menezes
RETROSPECTIVA OPORTUNA
Heloísa Juaçaba
Nesta exposição atual e retrospectiva de Aldemir Martins nota-se uma constante que tem sido a marca de sua arte: o desenho como elemento plástico fundamental. Em sua obra, a pureza de suas linhas e a imaginária de suas criações se harmonizam, não somente no final do trabalho, mas desde o começo da obra. Tem-se a percepção de que, desde a fase inicial de elaboração, as duas – o desenho e a idéia criativa -são produzidos com a mesma força. A técnica e a habilidade do desenho nada ficam a dever aos assuntos que darão forma e calor à obra. A atitude dos gatos, dos galos, a movimentação dos atletas, a força estuante da natureza em suas frutas, a valorização das qualidades positivas dos cangaceiros, o grito de protesto da terra ressequida, todas elas precisam do desenho para se transformarem em obras de arte. E as cores chegam ao desenho como um complemento indispensável – e somente quando o traço precisa de um pouco mais de luz e sempre com a finalidade de vivificar ainda mais a forma. As suas frutas estariam muito bem desenhadas e corretamente pintadas, mas há os toques muito pessoais, ajudados pela técnica e pela habilidade, que os fazem se transformar em frutos de sua terra, em animais de sua infância e em personagens de suas recordações. O elemento humano tem sido, em seus quadros, a valorização de uma ação, de um instante que sumariza o fulcro ou a razão daquela existência. Na tristeza e amargura de seus cangaceiros lê-se a história da injustiça primeira, o desafio à sociedade, a ferrenha fidelidade aos companheiros e o temor do fim inglório. Seus gatos têm, ao mesmo tempo, a felina atitude do amigo e a empáfia ousada do matreiro. A glória de nosso futebol se grava na graciosa curvatura de um drible ou na viril pujança de um chute. E seus galos! Em riscos perfeitos e límpidos ou em cores vivas e alegres, testemunham a louvação do artista às coisas belas da natureza. Sempre foi telúrico! Sempre desenhou e pintou com os olhos e a alma voltados para as coisas de sua terra. Mandou essas visões para Paris, para Veneza e para outras capitais da Arte. Viram, entenderam, premiaram.
Aldemir Martins
Eduardo Campos
Pedem-se uma apresentação para Aldemir Martins. Se nada pesasse para a escolha, que nos honra, influiria a amizade que nos tem unido conquanto distantes, hoje, um do outro. A província sempre me bastou. A Aldemir, não. Teria de ir-se, como antes partira Antônio Bandeira. A província inspira, mas limita o destino de seus artistas. O pintor pretende audiência, público numeroso e esclarecido, sensível às manifestações artísticas; gente para ver, admirar e provar talentos.
Antônio Bandeira aquarelava casas, fazia manchas tendo como cenário o Morro do Moinho; eram ruelas, alpendres dunas, míseros barracões. Gente e bichos, o sertanejo e seu cão magricela; o cangaceiro e seu cavalo, seriam a opção criativa de Aldemir Martins.
Primeiro, foram imagens de aferição humana nos traços sempre longos, expositivos, de criador espontâneo e objetivo, no desenho. Depois, tanta humanidade compreendida e amada eclodiria na arte do pintor nem sempre capaz de deixar escondida, por baixo das tintas, a expressão irrecusável do desenho, argamassa sem a qual o artista não teria construído seu êxito.
“Menino bom…”, diz-se afetuosamente, no Ceará, de quem nos comove com carinho. Menino bom esse Aldemir Martins, por múltiplos motivos, por jamais ter esquecido suas naturais e esplendentes fontes de inspiração, sertão e povo, não pelos momentos de alegria, mas exatamente por aqueles que sendo adversos nos marcam de modo irreversível. Artistas de tristes, mas paradoxalmente de heróis. Mágico manipulador de sóis, enternecido criador de homens e bichos, todos com o ferro de seu extraordinário talento surpreendentemente visível mesmo se o artista recusasse marcá-los.
Retorna ao Ceará, e é como se daqui não houvesse saído. Quando não está conosco, descobre fórmulas de se fazer lembrado, e de nos recordar também. É o Ceará que esplende em sua arte, de conceituação universalista, que decorre da consciência amadurecida de exercício artístico altamente consciente a serviço do próprio homem, da sua dignidade.
“Menino bom…” Principalmente porque, distante, nunca se desaferra de suas origens. É o que se vê, fácil, flagrante, na exuberância criadora de sua arte.
Aldemir
Milton Dias
Não é preciso apresentar Aldemir Martins na sua terra, nem é preciso lembrar quem nunca foi esquecido, mas é bom e grato contar suas excelências, louvar as graças do seu talento, dizer suas vitórias, repetir as grandes, belas coisas que realizou, assim como quem repete as estórias mais amadas, assim como quem faz a revisão dum balanço em que só há saldo. Contar, por exemplo, a conquista do mundo feita pelo menino de Ingazeiras que começou a aprender o dito mundo em Guaiuba e continuou seu aprendizado em Fortaleza e tanto avançou em conhecimento, engenho e arte que o Ceará o exportou de repente para as grandes galerias nacionais e internacionais.
E o mundo que era pequeno e começava em Guaiuba se estendeu aos seus olhos e se curvou à sua arte, a geografia lhe revelou seus mistérios, deu-lhe novas querenças, deu-lhe a fama como companheira e o moço Aldemir ficou conhecido universalmente, aplaudido, premiado, ganhou viagens, prestígio, ganhou de presente o reino da glória aqui na terra, para onde são muitos os chamados e tão pouco os escolhidos.
Não foi curto nem rápido este caminho entre o Ceará e as grandes cidades do país e do estrangeiro. Primeiro foi o eixo afetivo e vivencial Fortaleza-São Paulo, que dura ainda hoje e há de sempre durar, com a mesma ternura e constantes festejos. Depois veio a larga experiência do artista consciente que tinha fé e confiança e esperança no seu valor e, com inteligência, com sensibilidade, com suor, com amor, com a honesta ambição de se afirmar definitivamente, lançou-se com alma e coragem, alçou vôo em grande estilo, sem recorrera expedientes vulgares, sem quebrar a velha dignidade que trazia de herança do pai, o homem simples que lhe deu as primeiras lições de viver, que lhe ensinou a grandeza humana e o preveniu e armou contra as asperezas, as dificuldades que aguardam os que não se conformam com os limites menores da província.
Com fantástico domínio do traço, Aldemir inaugurou um estilo pessoal, numa técnica excelente, depois de conhecer, com êxito, as experiências mais variadas, desde a ilustração de jornal e de livro, o desenho aerofotogramétrico, o bico de pena, até o óleo, a gravura, a água forte. E tomou parte ativamente em todos os movimentos artísticos de alto nível do seu tempo, por toda parte onde passou, começando, certamente, por aquela integração no grupo da SCAP em Fortaleza, com Antônio Bandeira, Mário Barata, Barbosa Leite, João Maria Siqueira. Mesmo depois de ausente, participou ainda dos “Independentes”, enviando quadros para todas as mostras que o grupo promoveu aqui.
Não é fácil dizer quantas exposições realizou no país e no exterior (expôs em todas as grandes cidades brasileiras), nem é fácil contar quantos prêmios ganhou por este mundo de Deus Nosso Senhor. Mas é bom dizer que expôs no Chile, no Uruguai, Bolívia, Checoslováquia, Japão, México, Estados Unidos, (Dallas, Nova Iorque, Washington, Arkansas), Suíça, Itália, Espanha, Portugal, África, Argélia, Alemanha, Holanda. E como não é possível citar todos os prêmios, vale a pena aludir, pelo menos, àquele honroso “Prêmio Prezidenza Del Consiglio Del Ministro”, da 28ª Bienal de Veneza, do Melhor Desenhista Internacional.
Três Aspectos de Aldemir Martins
Estrigas
Do artista completo que é Aldemir Martins, profundamente ligado à cultura do seu meio de origem e de sua época, destacamos vários aspectos, dentre eles o histórico, o artístico e o humano.
Aldemir Martins, nos seus primeiros contatos com a arte, prosseguindo seu caminho sem se importar com o que dissera sua professora: – “que ele nunca seria um bom desenhista por não utilizar o lápis com bastante leveza”. A convicção dele, em contrário, foi maior e mais acertada. Logo adiante, o incentivo de Delfino Silva, apreciando o grafismo do seu desenho. Vem o Atelier, a SCAP (Sociedade Cearense de Artes Plásticas), o contato com os outros artistas, as leituras, as discussões, as críticas sinceras entre os colegas, as exposições, o caminho se alargando e se tornando ascendente, e, por fim, a superação do meio apontando e exigindo a marcha para a vitória maior no meio grande. Diria ele então (1945): -“não tenho inclinação para múmia, por isso vou embora – e lá se foi para o Rio de Janeiro – engrossar a cabeça-de-ponte iniciada por Bandeira”.
Do Rio se mandou para São Paulo, em 1946. Seu talento o colocou ombro a ombro com o novo ambiente. Desenvolveu-se em novas técnicas e novos processos. Seu nível artístico elevou-se e logo o artista dominou o meio com sua arte. Não parou mais de receber prêmios até hoje, dentro e fora do Brasil, chegando aos de maior importância. Sua inteligência, seu talento, sua capacidade criativa e de execução seu interesse e disposição para o trabalho, fizeram dele o artista completo que é pela qualidade estética, pela produtividade e comportamento artístico.
Aldemir não deu saltos. Sua linha evolutiva foi coerente e cresceu dentro de uma constante, sempre harmoniosa, onde, a cada passo, mais atributos criativos iam se incorporando à expressão total. Sua temática surgia da terra, do povo, dos costumes, dos fatos e das coisas da vida, vida de todos nós, do passado e do presente e ambos se fazendo futuro na imortalidade do toque artístico, do seu Nordeste sofrido e sofredor, com suas lutas, suas belezas e seus dramas. Tudo isso passando por seu talento criador e transmudava em belos trabalhos de arte onde certas soluções formais surgiam também inspiradas em coisas nossas.
Viagens, exposições nos três cantos do mundo, os trabalhos nos museus e coleções importantes. É o Ceará por aí afora, é o Nordeste visto e recriado através da arte na execução original de Aldemir Martins, onde o criador é identificado pela criação porque ambos se possuem mutuamente e um vive no outro.
Homenageado, premiado, condecorado, em diversos escalões, conceituado no mais alto nível do meio artístico internacional, a glória não o empavonou. Continua a mesma figura humana, mantendo sempre seu espírito brincalhão e a mesma amizade, válida em todos os tempos e situações, servida por uma capacidade das grandes atitudes, atingindo colegas maiores e menores. No entanto, consciente do seu valor e do seu conceito, com justa razão se faz valer e ser colocado no devido lugar quando as circunstâncias exigem.
Eis aí o que podemos chamar um artista completo, ao qual, nesta breve apreciação, externamos uma pequena homenagem que é constante dentro de nós, e somos de opinião que deveria ser também de todo o Ceará, cujo filho é figura de projeção no mundo todo, no que há de mais elevado, que é o meio cultural, particularmente, no caso de Aldemir, o das visuais.