Exposição 1975.04 – Gravuras Populares Francesas de Epinal – 11/09/1975
Como dar uma definição satisfatória de gravura popular? A noção de arte popular não é fácil de precisar e os textos mais ambiciosos não fazem senão confundir o problema com seus conceitos estéticos e sociólogos.
Poder-se-ia dizer que a arte popular é aquela que é criada pelo povo para o povo, embora se deva notar, quanto à gravura, que os seus criadores não são os que a utilizam. Melhor seria dizer que ela é o produto de uma fabricação artesanal para distribuição ou venda a baixo preço ao povo.
Esta exposição, consagrada mais precisamente às gravuras impressas na cidade de Epinal, na região dos Vosges nos permitirá apreciar a permanência dos caracteres da gravura popular francesa, sua sinceridade tocante, sua franqueza de sentimento e de expressão, sua ingenuidade por vezes maliciosa, a busca de representação do verdadeiro, tão estranha a nossa visão cotidiana do real, levou muitos surrealistas a conhecerem sua dívida para com a gravura popular.
A história da gravura de Epinal está inteiramente ligada aos acontecimentos políticos e à evolução dos costumes e da moda na frança.
Desde o começo do século XVII, duas atividades econômicas asseguraram a prosperidade de Epinal: a tipografia e a fabricação de cartas de jogar. As primeiras gravuras editadas em Epinal inspiravam-se em motivos religiosos, impressas inicialmente em preto e branco, e em seguida coloridas em recorte.
O primeiro dos gravadores de Epinal foi Jean-Nicolas Vatot. Somente no século XVII surgiram as primeiras dinastias de gravadores, os Didier, Raguin, Bastien e Lembelet, especialistas, antes de tudo, em impressões de gravuras de santos padroeiros e de gravuras da Anunciação, que tanto agradavam ao público da província. Conta-se a propósito que uma velha senhora, visitante habitual de uma boutique de gravuras em Epinal, onde estavam expostas pranchas de figuras pias, explicava cândidamente a um burguês da cidade: “Venho ver S. Pedro para que ele me reconheça quando eu chegar lá no alto”.
Jean Charles Pellerin, nascido a 21 de abril de 1756, é o fundador da impressora de gravuras cuja produção é aqui hoje exposta. Ele foi testemunha dos grandes acontecimentos que marcaram o fim do século XVIII e começo do XIX na França: a revolução de 1789, a Primeira República , o Reinado de Napoleão I… Pellerin teve a idéia antes de qualquer outro de diversificar a edição de gravuras religiosas utilizando motivos históricos, anedóticos e satíricos, inserindo na página provérbios populares, canções da moda, fatos diversos e os efeitos das armas da época napoleônica, dos quais encontraremos inúmeros exemplos nesta exposição.
Se a técnica da gravura permaneceu a mesma no começo so século XIX, malgrado a aparição de temas novos, as cores enriqueceram-se e diversificaram-se. Em 1822, Nicolas Pellerin sucedeu a seu irmão À frente da empresa familiar e a estereotipia substituiu a serigrafia nos trabalhos de impressão cedendo lugar, por sua vez, em 182, à litografia. Os retratos de celebridades apareceram, À proporção que se desenrolavam os acontecimentos políticos: Carlos X, Luís Felipe, o Duque de Orleans, Napoleão III e a família imperial. Os acontecimentos e fatos da atualidade passaram a representar motivo de grande interesse, sendo acompanhados dia a dia, do que temos um exemplo notável na bela imagem sobre a invenção da estrada de ferro.
Em 1854, Charles Pellerin, filho de Nicolas, modernizou o equipamento familiar, introduziu uma prensa cilíndrica e orientou a produção em três grandes direções: gravuras militares, gravuras da atualidade e gravuras infantis. Seu filho George sucedeu-lhe em 1880, introduzindo a zincografia e fazendo da “Imagerie Pellerin” o que veio a tornar-se depois do começo do século XX: uma empresa moderna empregando uma centena de trabalhadores, tendo clientes nos cinco continentes e imprimindo comentários em várias línguas, inclusive o árabe.
Como foram difundidos os produtos tão variados das gravuras de Epinal? No começo, os gravadores as vendiam em suas próprias boutiques e a alguns vendedores ambulantes. A partir da Restauração e até o fim do século XIX, foram os vendedores ambulantes, os savoianos, os habitantes dos Pyrineus, na sua maioria, que asseguraram a venda. Mais tarde, apareceram os cantadores populares, que percorriam feiras e mercados, mostrando com uma longa vara as cenas dos quadros, enquanto curiosos acompanhavam em coro o refrão entoado. As peregrinações contribuíram inicialmente para a propagação das gravuras piedosas. Atualmente, é nos comerciantes de lembranças e nos vendedores de arte que se encontra a maior parte da produção das gravuras de Epinal.
Qual papel desempenhado na França pelas gravuras de Epinal?
Durante longo tempo, elas responderam Às aspirações do povo, colocando o culto doméstico ao alcance de todos. Os frisos, as estampas, muito coloridas, substituíram os quadros que os provençais não podiam adquirir. As gravuras narrando lendas e estórias maravilhosas foram, ao lado das canções populares, oferecidas pelos vendedores ambulantes, as únicas distrações do povo que, À falta de jornais, muito caros até o meio do século XIX, informava-se das novidades por meio das gravuras da atualidade.
Numerosas gravuras mostravam as invenções e as grandes descobertas. As gravuras militares, que sem dúvida nenhuma fizeram nascer muitas vocações, contribuíram largamente para o despontar do Segundo Império.
Para nós, as gravuras de Epinal constituem preciosos documentos para a história dos costumes e da moda. Elas nos permitem penetrar na alma do povo, tornando-se por meio das reimpressões de velhas madeiras coloridas à mão, tiradas em excelente papel e em séries limitadas, verdadeiras obras de arte muito procuradas pelos colecionadores.
É inevitável a tentação que se experimenta inicialmente, diante destas produções francesas, de aproximá-las das nossas gravuras populares. Claro que não me refiro à fatura, que lá se deve a instrumentos mais desenvolvidos, permitindo um resultado artesanal menos primário, mais elaborado, mais rebuscado até – e conduzindo os artistas a uma evolução evolução que atingiu nível ainda hoje apreciado, analisado e louvado. Refiro-me ao espírito, à ingenuidade que de vez em quando dá lugar à malícia, cultivando o sentimento religioso que alterna com o senso de humor, freqüentemente revelado nas estórias contadas em pintura, que nos levam a rir, pelo engraçado espontâneo e verdadeiro. E outras, que não fazendo apelo ao anedótico, nos obrigam a refletir, pelo que carregam de observação penetrante e sagaz.
Lá do maciço dos Vosges, vem agora, pela graça de Deus e pela iniciativa da Aliança Francesa e do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, esta coleção de imagens populares de Epinal, que se tornaram conhecidos não apenas na França, mas no mundo inteiro, divulgadas em reproduções que se espalharam e que tornaram famosa aquela cidade, onde, ainda hoje, partindo da Idade Média, a fiação e a tecelagem continuam sendo as atividades principais e onde o artesanato em madeira, a fabricação de papel e de cartas de baralho, a pequenametalurgia e a vidraria são outros ramos muito bem representados.
Através desta coletânea, tão bonita no seu colorido festivo e luminoso, sem no entanto chegar ao uso do que se convencionou chamar a “violência de cores”, pode-se acompanhar a evolução dos costumes, da moda, os grandes acontecimentos políticos e toda uma larga faixa da História da França. Basta se deter na análise de qualquer dos quadros, para descobrir o cuidado do artista popular na pintura das figuras humanas, a que não falta o cuidado com o detalhe, somado à força na expressão fisionômica, as atitudes naturais, os gestos com a dinâmica, dos movimentos que eles sabem imprimir de maneira surpreendente e impressionante.
A história da “Imagerie d’Epinal” chega a ser comovente, pela fidelidade que seus cultores souberam conservar, sem solução de continuidade, desde o século XVII e que, passando de pai a filho, vem atravessando gerações.
Partindo do povo, foi sempre o povo o grande beneficiado, que teve, ao seu alcance, informações históricas, políticas, militares, artísticas, religiosas, científicas, àquele tempo em que os jornais eram raros e caros e a fotografia não tinha as facilidades de hoje. Desta forma, foram conhecidos os grandes homens do País, através dos retratos que, ganharam cada dia mais sucesso, com um colorido que se aperfeiçoava e se enriquecia sempre.
Assim como aconteceu na literatura, abordaram inicialmente temas religiosos, ilustraram estórias, trechos bíblicos e provérbios que viviam na boca e na alma do povo. E nos mercados, exatamente como procedem nossos camelôs de literatura de cordel cantando em voz alta (agora já em microfone) o que os folhetos trazem – às vezes interrompendo a leitura no “clímax” para aguçar a curiosidade do espectador e incitá-lo à compra – faziam eles, nas feiras, mostrando os quadros, explicando, apontando com uma varinha os detalhes que mereciam maior atenção ou acompanhando, desta mesma maneira, os episódios pitorescos ou edificantes, que os cantadores populares se encarregavam de interpretar. E a gente simples, pobre de letras e de diversões, ia facilmente se ilustrando.
Nesta exposição, merece atenção especial a série dedicada a Napoleão – as batalhas, a Passagem do Mont Saint Bernard, a Véspera de Austerlitz, Napoleão no Campo de Boulogne, o desembarque, o retorno da ilha de Elba, a entrada de Grenoble. Sobretudo merece destaque a Despedida aos Soldados da Velha Guarda, com trechos impressos do discurso que acabei aprendendo de cór, de tanto repetir com meus alunos. O que me trouxe uma emoção especial, quando entrei pela primeira vez no Castelo de Fontainebleau: tive a impressão de que ouviaos tambores, o general Petit apareceria mandando avançar a bandeira, alinhando os soldados para ouvir as palavras do “Petit Caporal”, incisivas, lúcidas, enxutas, oportunas, a que não falta nem sobra nada e que terminam com aquele fecho dramático: “Adeus, meus filhos”.
Vale a pena chamar atenção também para o “Moinho Maravilhoso”, que o artista imaginou, o engenho para onde eram levadas pelos maridos as más esposas, as mulheres tagarelas, as bêbadas, as muito vaidosas. Era muito bom e saudável e aconselhável: passadas no moinho, as mulheres saiam recuperadas. Onde andará aquele Moinho, de inegável utilidade?
Por outro lado, uma máquina não menos prática, o “Alambique Miraculoso” que se propunha a tornar os maridos perfeitos, curando-os de todos os vícios e defeitos – bastava que as esposas os mergulhassem no alambique confiado a um alquimista.
É realmente uma oportunidade excelente esta que a Aliança Francesa e o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, de braços dados, nos oferecerem, para conhecer estas imagens tão espalhadas por toda parte, em que a religião, a malícia, a história, o cômico, o humor e o anedótico são tratados com imensa pureza, com gosto e com arte, usando o velho, conhecido espírito francês que o mundo respeita e admira.
Milton Dias
Relação das Gravuras Expostas
1. Queda da Bastilha
2. Batalha de Rivoli
3. Passagem do Monte S.Bernardo
4. A Véspera de Austerlitz
5. Austelitz
6. Homenagem
7. Napoleão no Campo de Boulogne
8. Desembarque de Napoleão
9. O Retorno da Ilha de Elba
10. Entrada de Napoleão a Grenoble
11. Batalha de Waterloo
12. A Batalha de Moscou
13. O Adeus de Fontainebleau
14. Napoleão a Santa Helena
15. Vida de Napoleão
16. Napoleão, O Grande
17. O Crédito Está Morto
18. O Relógio de Crédito
19. A Grande Querela do Casal
20. O Moinho Maravilhoso
21. O Alambique Miraculoso
22. As Reformas do Casal
23. Reforma dos Senhores Alunos
24. Boa Santa Preguiça, Protetora dos Preguiçosos
25. Bem Aventurado Santo Abandono, Patrono dos Preguiçosos
26. Degrau das Idades
27. O Inverno
28. Música de Amadores
29. Adolescência de Paulo e Virgínia
30. A Estrada de Ferro