Exposição 1963.06 – Barrica – 10/1963
(Recorte de Jornal da Época)
Jornal Unitário – 19 de agosto de 1963
Coluna de Hermam Lima
Barrica
Um Expressionista Cearense
O Ceará nunca foi uma terra de pintores. Aqueles que, entre nós, têm procurado fixar para a preferência a sua luz e a sua gente, a sua paisagem e os seus tipos de terra e do mar, vaqueiros e jangadeiros, rendeirinhas de bilro e almofada ou cantadores, têm-se valido antes da pena do que do pincel.
Também nem é preciso assinalar o prestígio das letras cearenses de todos os tempos, quer na poesia, na crítica, na historiografia, no Direito ou até mesmo nesse difícil e extremado setor intelectual que é a filosofia.
O que é preciso dizer é que é portanto muito justificado não sobram artistas doutra espécie, para a expressão plástica da nossa gente, quando há, por exemplo, quem tenha pintado nossos verdes mares bravios com aquelas tintas inapagáveis até a imortalidade do pórtitico de Iracema, a brilharem como líquida esmeralda, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.
Não menos vivida, a imagem da terra cearense, tracejada em linhas mestras, com a segurança dum pintor impressionista, pela arte de um Antônio Sales, um Domingos Olímpio, um Gustavo Barroso, um Rodolfo Teófilo, um Adolfo Caminha, uma Raquel de Queiroz, a que nada falta em côres, planos, volumes, distribuídos com uma clara ciência do metier, a emparelhar-se com a melhor expressão plástica do tema, se tratado objetivamente pelo pincel.
Daí a surpresa que há dez anos justos me estava reservada em Fortaleza, numa das minhas periódicas viagens à terra natal. Ao contrário do que sempre ocorria, de idênticas oportunidades, em vez de reuniões literárias, para a apresentação dalgum poeta novo, o que tive então ocasião de visitar foi nada menos do que um Salão de Pintura Cearense, o quinto por sinal, que se realizava regularmente na capital do Estado. Até então, o que se sabia de pintura do Ceará era que vivia para as bandas do Camocim, um tanto misteriosamente entregue a trabalhos de sua carta de engenheiro, um que era grande nome, realmente, na arte patrícia desde que conquistara o prêmio de viagem ao estrangeiro, aí por volta de 1913: Raimundo Cela, de quem o Museu de Belas Artes acabou agora mesmo, de apresentar uma grande e bela exposição póstuma. Sabia-se, também, de Vicente Leite, que se findara malogradamente no Rio, na hora mesmo em que havia conquistado o mesmo cobiçado prêmio de viagem, sonhado anos a fio. Do meu tempo de rapazinho, ficara-me a memória de três legítimos artistas boêmios, os últimos de sua estirpe, quando era fácil a vida a trôco de um simples desperdício de talento, muito embora um dêles tivesse por longo tempo, sido profissional de altos méritos. Ramos Cotôco, Paula Barros e Antônio Rodrigues ou Roiz, como assinava, às vezes, seus trabalhos encheram por muitos anos, a crônica da mansa boemia do seu tempo, vez por outra consubstanciando-se em obra mais duradoura sua inegável vocação artística, tal como acontecera com as decorações do Teatro José de Alencar, feitas pelo primeiro. O mais seguro do metier era, sem dúvida, Antônio Rodrigues, que eu conheci em pleno fastígio de desenhista de retratos a crayon, feitos por ampliação de fotografias, muito longe, no entanto, em cunho artístico, dessas horrendas ampliações que afeiam hoje quase tôdas as casas de subúrbio do Rio. Antônio Rodrigues apenas aproveitava, do trabalho fotográfico, um leve esbôço, sobre o qual efetuava uma autêntica obra de arte, manejando o fusain com uma perícia invulgar, capaz de dar aos seus trabalhos o toque duma genuína criação.
De meu tempo, também, meu companheiro de emprêgo na antiga Fotografia Olsen, fôra Otacílio de Azevedo, talento real, tanto para a pintura, como para as letras, poeta de tantos versos largamente admirados nas rodas locais. Todos êsses e mais Gérson Faria, mais recente a do mesmo apreciável mérito e com exceção de Raimundo Cela, o eterno ausente, ou de Vicente Leite, que para conquistarem um lugar ao sol haviam seguido naturalmente a fatalidade da raça, emigrando para o sul, tinham que se entregar a outros interesses para a dura subsistência. A todos eles, além dum conhecimento disciplinado do artesanato, fruto genuíno apenas do mais precário autodidatismo, faltara qualquer possibilidade de um convívio artístico mais fecundo, pelo estímulo recíproco, uma vez que do pobre ambiente restrito em que viviam nada lhes poderia advir no particular.
Daí a minha surpresa, em 1946, encontrando em pleno bulício de colméia, um grupo de jovens pintores, olhados já com respeito pelo meio local.
Num excelente Esquema da Pintura Cearense, Barbosa Leite, que foi um dos nomes de primeira pleno daquela renovação plástica, atualmente no Rio, conta os primórdios do movimento processado desde 1941, quando se fundou o Centro Cultural de Belas Artes, o primeiro movimento de proporções ambiciosas fundado no Ceará, visando para esta terra de glórias multiplicadas, horizontes mais efetivos no panorama artístico do país.
Barbosa Leite enumera impressivamente, todos os ásperos percalços com que os artistas tiveram de lutar para não deixarem dissipar-se a chama que os animava. Mudanças repetidas de sedes de reuniões, despejos por falta de pagamento de aluguéis, acolhida aqui e ali nalgum acanhado recinto generosamente cedidos por certos afeiçoados à arte, tudo êles suportaram. O inevitável, no entanto, teria de acontecer, a paulatina retirada dos mais aventurosos e destemidos, como aconteceu logo com Aldemir Martins, vindo depois o mencionado Barbosa Leita, Carmélio Cruz, que se acha em caminho agora, Barrica.
Este constitui, sem dúvida, uma das mais fortes personalidades do grupo dos Independentes, a que depois se incorporaram os artistas citados. Mercê duma genuína vocação e duma longa e persistente dedicação ao artesanato, já de seu pleno domínio, no óleo, no carvão, na aquarela, Barrica não é um nome estranho no sul, porquanto já expôs no Recife, em São Paulo e aqui mesmo, no ano passado, sempre em firme ascensão na sua arte ousada e completa.
Desde 1946, tive ocasião de assinalar que me parecia um pintor completamente diverso dos demais expositores de Fortaleza, havendo que pôr em foco, principalmente aquele sombrio colorido crepuscular de duas marinhas então expostas – Draga e Volta da Jurema – que me havia também surpreendido aqui, nos trabalhos de Antônio Bandeira e Inimá, apresentados na Galeria Askanaay, em 1945. Trata-se, é fácil de entender, dizia eu, de artista duramente disciplinado, que não se deixa dominar pela fatalidade da luz nordestina, trasfundindo à paisagem, mesmo a mais penetrada de fulgores, a turva ressonância do seu temperamento evidentemente do mesmo cachet que dá às telas de um Pancetti aquele pêso de céus mortos e águas em decomposição. Com muita agudeza, notara a seu respeito Braga Montenegro, crítico de arte e de literatura dos mais ágeis e bem informados de hoje, que alguma coisa lembrava na sua arte, o americano Ryder. Havia, de fato, uma auro de irrealidade a envolver aquelas telas, especialmente outra, belíssima, “Noite de serenata”, dum céu líricamente verde, de fluidos horizontes que davam tôda a propriedade ao reparo, pela clara afinidade de intenções do mesmo americano e do pintor da minha terra.
Com o tempo, Barrica firmou-se ainda mais nos seus trabalhos, não sendo de esquecer, no desenvolvimento de sua lição que teve duma longa aplicação à cerâmica, de que se fez também excelente cultivador no Ceará. Hoje, voltado exclusivamente para a pintura, o que ele expõe na Galeria Nagasawa, ao cabo dêsse duro tirocínio de dez anos, dá uma demonstração magnífica dessa arte ao mesmo tempo ousada e definitiva. Trata-se de um pintor de fato diferente, em nosso meio, um expressionista genuíno, sem quaisquer aproveitamento, no entanto, de inadaptáveis reminiscências dum Soutine. Em quase tôdas as suas obras expostas, principalmente no magnífico plano para um mural (Orós), tumultuoso e violento no seu admirável cromatismo e na sólida construção da paisagem torturada de rochas e maquinárias humanas, a que não seria alheia aqui sim, uma salutar lição de Kokascha; no esplêndido movimento cromático de “Joazeiro de meu Padrinho”; na beleza patética de certos recantos do Recife, de Santa Teresa ou naquela ardente “Feira noturna do Ceará”, cujo turbulento vocabulário plástico trai de maneira singularíssima uma extraordinária sensibilidade de pintor já perfeitamente fixado em suas tendências e no rigoroso contrôle de côres e formas encontramos acima de tudo, uma constante poética da mais alta força, um lirismo que nada tem de sentimental, uma evidente força duramente contida, ao temor de qualquer excesso declamatório. Por que a nota dominante na pintura de Barrica ao ar de sua inegável originalidade em nosso meio, é a gravidade dessa arte de intensa vitalidade íntima, porém de permanente disciplina. Nada de improvisação. Se lhe quiséssemos procurar entre o que apareceu por aqui nos últimos tempos, um digno “pendat”, seria talvez na mostra do alemão Woller, que ele aliás desconhece, pela pureza daqueles roxos, laranjas, azuis e verdes quase negros que dão a certas paisagens de Barrica, tal como acontece com Meireles uma ressonância de tão belos acordes plásticos, na profunda dramatização daquelas velas de jangadas, donde fugiu tôda luminosidade solar, naquele mar de bronze, naquele céu turvo e profundo, naquela figura de pescador que se esvai dentre as sombras das dunas, como avatar dos bêbedos , dos mendigos noturnos, de mestres Goeldi.
O sêgredo dêsse quase fenômeno nordestino tem assim sua fonte no profundo sentido telúrico de uma arte de linguagem plástica ao mesmo tempo pessoalíssima e nítidamente universal.