Exposição 2005.03 – Babinski / Burgos: Epifanias – 17/05/2005
Babinski / Burgos
Longe de mostrar uma exaustão, a pintura se apresenta como um desafio.É isso que une Maciej Antoni Babinski, 74 anos, polonês naturalizadobrasileiro, radicado, desde 1992, em Várzea Alegre, e José Stênio Burgos de Macedo, 51 anos, arquiteto, natural de Crateús, com ateliê em Icaraí de Amontada. O que poderia haver de comum entre os dois? Babinski é aparentemente ascético, cerebral em suas formulações sobrearte. Mas nada disso é verdade. Temos um artista em pleno vigorcriativo, em ebulição. Burgos é visceral, transborda paixão na pintura matérica e na pincelada vigorosa. Mas busca uma disciplina que seria o contrário do que faz.Em comum, o desejo de superação. Quem vê Babinski, não imagina o sofrimento do trabalho que, longe de significar perfeccionismo, se traduz em um diálogo permanente consigomesmo, com a história da arte e com a tradição, no sentido de superá-la.
Burgos tem amesma obsessão que envolve a qualidade da trama da tela, a possibilidade de ajuste do chassis, o uso de tintas importadas e a urgência em se expressar. A vida fez com que se encontrassem e estabelecessem uma relação de amizade e trabalho. Burgos se considera discípulo. Babinski, com sua história de vida que resume o século XX, com guerras, fugas, exílios e sonhos é, inegavelmente, o mestre que partilha experiências, longe do didatismo, antes instigando (a si mesmo, inclusive e principalmente) ao inconformismo, que é a essência da arte. Essa retomada da pintura implica na valorização do desenho, no questionamento de soluções fáceis e na certeza de um diálogo com as teorias estéticas e de uma revisão crítica do próprio papel da arte, nesses tempos de tecnologias de ponta, virtualidade, arte efêmera, etc.A pintura (de Babinski e Burgos) soa, nesse contexto, como um manifesto. Nada de jogo para o mercado (ou de negação “blasé”), muito menos de formulações simplistas, ao sabor dos catálogos do que vem dos grandes centros.
Eles são cidadãos do mundo. Babinski que nasceu em Varsóvia, começou seus estudos de arte em Montréal (Canadá), foi professor da UnB (no tempo da experiência questionadora de Darcy Ribeiro, desmantelada pela ditadura militar), trabalhou em São Paulo, Uberlândia e veio para Várzea Alegre, passando pelo Crato, “tangido” pela busca de um “esconderijo”. Burgos fez dos Inhamuns e do Curso de Arquitetura da UFC (que concluiu em 1978), o trampolim para uma bolsa em Barcelona, visitas a oficinas de tecelagens no Oriente Médio e viagens constantes aos principais museus e galerias de arte, até fazer da pintura um elo com a realidade.Eles estão ligados pelo sentido de epifania, instante único que faz a tela explodir, como um orgasmo, quando dão por encerrado o trabalho e inscrevem suas assinaturas. Quantas vezes eles voltam ao cavalete, na busca de uma perfeição que passaria despercebida a olhares menos exigentes… Outro ponto que os aproxima é a paisagem, embora eles estejam anos luz de uma pintura símile da realidade. Eles sabem que fazem pintura e não fotografia ou registro / documento de um momento que não se deixa aprisionar. Extrapolam o visível e instauram uma poética do olhar.
A paisagem para eles é um álibi e vai além dos postais. A observação, no caso de Babinski, passa pela finalização do trabalho no atelier, com luz artificial. Burgos trabalha ao sabor do vento, se deixando impregnar pela maresia e pelo sol. Babinski pinta a partir de seu sítio Inxu, a dezoito quilômetros de Várzea Alegre, onde mora em companhia de Lídia, do filho José Aniel e do neto Jean Carlos. Lá ele fez sua pasárgada e seu ateliê, em meio à mata de sabiás, com o córrego que passa ao largo, tranqüilo, e o brejo do arrozal. Essa paisagem, registro de sua passagem pelo Ceará, é sua contribuição fundamental para nossa arte. Burgos se refugiou em uma Icaraí paradisíaca, com sua explosão de lúmens, com o verde mar quebrando à sua porta e as nuances das dunas. É lá que ele pinta, ao mesmo tempo aberto para a natureza e imerso na cultura, na varanda de sua casa de madeira, escancarada e fechada aos olhares curiosos de quem sabe que maturidade e seriedade não rimam com futilidade. Ambos se colocam no centro e pintam o que está em volta. Essa posição é sofrida, privilegiados somos nós que fruímos o que eles fazem.
Sertão que Babinski vê florido pelas buganvílias, contornado pelo serrote, aolonge; mar que Burgos sabe idílico, com ameaça do turismo predatório, da carcinicultura e da expectativa dos “resorts”. Eles não têm ingenuidade, mas uma consciência crítica que interfere com uma arte que não cai no panfleto, pintura, que não precisa do discurso para se perfazer, porque se sustenta por si, sem teorizações esotéricas. O respaldo das articulações mantém essas propostas que unem mar e sertão, no mesmo MAUC, na mesma sala, e na mesma vertente de uma arte que é daqui e do mundo. <br>
Burgos se alimenta do sol, Babinski rejeita a luz que “chapa”, de tão intensa. Eles não saberiam / poderiam viver sem a pintura. E, numa prova de que os códigos se imbricam, complicando e enriquecendo tudo, Babinski diz que a grande contribuição do Ceará à sua pintura foi a voz. Voz que Burgos também transforma em cores, com “freqüências” diferentes, como disse o professor Pedro Eymar ao ver os trabalhos reunidos. Diferentes registros e técnicas, outras relações com os materiais, discussões sobre os pigmentos, visões de mundo complementares (às vezes antagônicas), mas a mesma paixão, apolo e dionísio, na mesma paleta.
Gilmar de Carvalho