Exposição 1991.01 – De um Alguém para Outro Alguém – Descartes Gadelha – 26/02/1991
(Transcrito do Convite)
Memórias que são imaginação e devaneios que são inspiração fazem a surpresa na pintura de Descartes Gadelha, e essa surpresa impõe às telas parte de sua força. Assim, o uso da surpresa como poder e como recurso do pensamento, cristalizado em pinceladas, é a estratégia utilizada pelo artista para construir o inesperado.
A obra de Descartes é tão humana que deixa o observador inquieto, pensativo e alarmado. E isso é bom. Sacode o mundo de hoje das pragas tecnicistas, das pinturas, computadorizadas e das inteligências artificializadas. E assim o profissional Descartes Gadelha se inscreve no social e no científico ao representar a história e a estória da prostituição de Fortaleza- que é a do Brasil na mesma dimensão cultural proibida, marginalizada. Note-se que “a hipocrisia da sociedade cristã-ocidental tenta minar a condição de cidadã que toda prostituta deve possuir” (Rudnicki, D., 1990:21).
Sem esgotar psicologicamente o tema, o artista num laborioso percurso, misto de reminiscências de infância, de curiosidades juvenís e de interpretações de adulto, desfila e desafia a “urbis”. Imprime, portanto, um embasamento sócio-antropológico ao seu trabalho.
Com isso Fortaleza, a cidade, acaba de contrair uma dívida com Descartes porque ele traz a tona e revive o mundo oculto do “Curral” (o “Curral das Éguas”) dos Anos 30; do Arraial Moura Brasil dos Anos 40; do ” Cinzas” dos Anos 50; do “Pirambú” dos Anos 60; do “Farol” dos Anos 60 e 70; do “Centro” de todas as décadas das do 1900’s. Descartes consegue captar, com coerência e representatividade, a mudança social de cenário do tráfego metropolitano dos anos 70, condensar os efeitos da “mídia” doso anos 80 e, assim, absolver as inovações do jogo de sexo na Fortaleza atual.
O portentoso resultado dessa experiência etnográfica de campo, completada com a do estúdio, é a exposição bem abrangente do núcleo temático descartiano, ” De um Alguém para outro Alguém”.
No seu conjunto, a exposição é forte nos amarelos fauvistas e vermelhos flamejantes, e apresenta, em crua nudez, uma visão quase fantasmagórica na imagem de mulheres exalando e expulsando libido da maneira a mais orgíaca. Será possível retratar e decompôr o libido sem ser um Freud?
Na mulher decodificada por Descartes Gadelha, e de contornos expressionistas; ou de cócoras, a velha ou a moça, é sentido de alerta e expressão de força e altivez. E se mulher, “da vida” ou “do lar”, está em pé e traz o braço acotovelado para uma mão na cintura ou no quadril, então esta mulher é forjada pelo aço da vida dura, amarga, mas aí está a desfiar o mundo.
Descartes se inspira na natureza, sim; natureza aberta e em contínua gestação. Mas ele também assola, invade essa natureza (esse mar, esse céu, essa parede, esse tapume, esse corredor-tabique, esse pardieiro) com o indivíduo, o pária, o homem marcado, a trama e o trauma sociais, os conflitos; as descontinuidades e marginalidades no social.. Se gritantes ou sutis, depende do seu humor, da sua “verve” momentânea, ou da inspiração que decidiu captar na sua “construção da realidade” (Berger, P. e Luckmann, T. 1983).
Nesse esforço de delimitação temática “De Alguém para outro Alguém”, Descartes Gadelha descortina o mundo inteiro do mistério, da dor, da paixão, da decadência, do amor. Na modéstia-brejeirice do tema proposto, investigado e dissecado, Descartes teoriza, na tela, a Arte, o Discurso, e o Dilema da sexualidade humana. Ou, noutras palavras, as artes da feminilidade, os discursos da libido, os dilemas da identidade social.
Trecho do artigo: Descartes, ” De um alguém para outro alguém”
Zélia Sá V. Camurça
Segundo Descartes: O termo “DE UM ALGUÉM PARA OUTRO ALGUÉM”, foi colhido na década de 60 na Amplificadora Brasil, popularmente chamada de irradiadora, localizada no Arraial Moura Brasil e que prestava importante serviço de comunicação à comunidade.
Era comum ouvir-se mensagens sonoras como estas:
“Esta linda página musical vai de um alguém para outro alguém que está muito arrependido” ou “esta mimosa jóia musical é uma solicitação de um alguém para outro alguém que oferece ao seu próprio coração ferido e que outro alguém sabe quem é”.