Exposição 1962.02 – Sérvulo Esmeraldo – 15/03/1962
(Transcrito do Catálogo)
Louvação ao Mestre-gravador Sérvulo Esmeraldo
Primeiro foi no Crato, ele menino, eu rapazote, ambos amando a cidade que naquele tempo era para nós a capital do mundo. Crescemos os dois à margem do Batateiras, riozinho sem grande significação mas, de qualquer modo um rio, apesar de ficar seco a maior parte do ano. Se juntos não estivemos na rua da Vala, que durante muitos anos foi o meu reino, impregnamo-nos da mesma paisagem — a serra circundando a cidade, as árvores sempre verdes enchendo-nos as almas de esperança, os longos crepúsculos e as madrugadas frias, os cantos das aves que ainda hoje não saem de nossos ouvidos e dos nossos espíritos, tornando-nos sentimentais e, sobretudo, humanos.
Já nesse tempo andava ele às voltas com pedaços de madeira, fazendo “coisas”. Essas eram admiradas pelos mais velhos, mas admiradas superficialmente, apenas motivando frases como “ësse menino é um danado”. Isso pode ser pouco hoje, mas naquele tempo era muito. Danado tanto podia significar endiabrado como inteligente, esperto, audacioso, talentoso. Creio que para ele o melhor significado era o último.
Depois foi em Fortaleza — juntos trabalhamos por mais de dois anos, em uma tipografia onde se pensava em tudo, menos em ganhar dinheiro. A tipografia também não precisava disso, porque era uma instituição cultural e o reino da cultura é bem diferente desse pobre reino material do mundo em que vivemos. Então a sua danação se mostrou mais acentuada — agora o desenho o absorvia, vivia cercado de artistas locais e dava mais atenção à sua arte do que mesmo ao trabalho da tipografia. Quantas vezes os fregueses ficavam esperando por uma informação sobre impressos enquanto ele discutia técnicas de xilogravura com os seus colegas artistas! Os sábios da instituição proprietária da tipografia passavam pelo rapaz e balançavam a cabeça — aquele gesto tanto podia ser uma desaprovação pela perda de tempo do moço como uma aprovação velada às suas tendências. Eu tomava a cousa como uma aprovação — e quando dava em mim estrava também discutindo assuntos de xilogravura, enquanto os fregueses continuavam a esperar, pacientemente, pelas informações a respeito dos impressos que lhes interessavam.
Foi nessa época que seu nome surgiu como artista — expôs em salões locais, recebeu prêmios, teve críticas acerbas. Já se notava que pelo menos persistência ele tinha — se desde pequeno vivia às voltas com aquilo e ainda não desanimara! Pelo contrário, em vez de recuar ante o impacto da realidade o que ele fez foi sonhar com outros horizontes — e um dia, depois de vários meses ausente, ao voltar de uma longa viagem, encontrei-o de malas arrumadas para S. Paulo , onde se instalou, começou a realizar-se, passou a viver plenamente a vida que queria.
Viver plenamente? Não, ainda não. Pois de S. Paulo um dia me falou que desejava ir para a França — e depois de trocas de cartas de várias espécies e para várias personagens, lá se vai o rapaz para França, numa ridícula bolsa de estudos que, apesar disso, era o máximo que se podia conseguir no momento.
E depois de quatro anos vou encontrá-lo em Paris, transformado em mestre-gravador, com um nome respeitado nos círculos artísticos da capital do mundo. Fui morar vizinho a ele — em que outro lugar poderia eu ir morar senão naquele Quartier Latin, perto da rua Monsieur Le Prince, ouvindo o sino da Sorbonne e acordando à noite com as serenatas de estudantes? Na noite da chegada estava frio — mas ainda assim ficamos até às quatro da manhã, num velho café nosso conhecido, a erguer saudações à França éternelle, a levantar brindes a Monsieur Hugo, a fazer saudações ao Corgo — pobre Sena, jamais tiveste um apelido tão desmoralizante! — e sobretudo a recordar o Crato, as suas feiras, as festinhas de carnaval, os banhos da Batateira, o Padre Pita, as casas de beira e bica que para nós eram como palácios…
Foi então que tomei conhecimento exato da arte de Sérvulo Esmeraldo. Vi os seus quadros, conheci sua técnica, com ele assisti à impressão de gravuras na velha imprimerie das proximidades do Panteon, interessei-me pelas experiências que não se cansava de fazer. E foi então também que me certifiquei que o menino danado do Crato agora era que estava danado mesmo — expondo nas principais galerias da Europa, convidado — convidado! — para apresentar gravuras no mais célebre salão de Paris, o Salão de Maio, apresentado na galeria de gravuras mais importante, da Europa, a La Hune, recebido pela crítica como um dos artistas mais expressivos de sua geração. Foi aí que vi as suas têmperas notáveis, de uma penetração que só os artistas realizados são capazes de possuir — e ele apesar disso não se conformava, porque o seu temperamento é de natural inconformado.
Da têmpera passou para os afrêscos — na têmpera o artista é obrigado a ficar na superfície plana da tela, e sua liberdade de um certo modo se limita, como aconteceu com os mesres flamengos. Ora, menino danado do Cariri não quer saber de limites — daí passar ele para os afrescos, onde o gravador se encontra com o pintor, o que nos parece ser o melhor caminho para Sérvulo Esmeraldo. Foi em 1960 que fez os seus primeiros ensaios nesse novo setor da arte — e de lá para cá as peças que produziu já estão andando no mundo, louvadas pelos conhecedores, bem recebidas pelos críticos, já agora disputadas pelas galerias, que vêem no artista brasileiro um dos iniciadores de uma nova técnica de afrescos na França. Esse Sérvulo Esmeraldo, que o Museu de Arte da Universidade do Ceará está apresentando, em uma amostra significativa pois é a primeira que faz no Brasil depois de longos anos de ausência e sobretudo depois que está utilizando nova técnica na secular, mas ainda assim dificílima arte do afresco. Creio que as peças que são apresentadas nesta exposição dão bem uma idéia do valor do artista cearense que hoje é artista internacional. Seus desenhos , suas gravuras, seus afrescos, tudo isso resulta de uma insatisfação que não tem limites. E é graças a essa insatisfação que tenho a certeza de que Sérvulo Esmeraldo continuará a ser um artista sempre em ascenção — para alegria das artes plásticas do Brasil e sobretudo para alegria dos seus amigos, cratenses ou não, que com ele compartem os sucessos obtidos, tornando comuns a todos a suas vitórias, que são vitórias de alguém que trabalha conscientemente para realizar, também conscientemente, os sonhos de uma mocidade que os anos jamais apagarão.
Fran Martins
Relação das Obras Expostas
1 – 14 de julho (Têmpera sobre tela; 19 x 24cm) – Paris 1960
2 – As Nuvens (Têmpera sobre cartão; 31 x 51cm) – Le Chambon Sur Lignon 1960
3 – Gráfica (Têmpera sobre cartão; 34 x 51 cm) – Paris 1961
4 – O Outono (Têmpera sobre cartão; 27 x 44 cm) – Paris 1961
5 – Mardi Neuf Heures Du Matin (Têmpera sobre cartão; 30 x 47 cm) – Paris 1961
6 – Noturno (Têmpera sobre cartão; 28 x 46 cm) – Paris 1961
7 – Da série Caatinga (Têmpera sobre cartão; 19 x 30 cm) – Paris 1960
8 – Da série Caatinga (Têmpera sobre cartão; 23 x 31 cm) – Paris 1960
9 – Mardi Onze Heures Du Matin (Têmpera sobre tela; 22,5 x 32 cm) – Paris 1961
10 – A Fazenda (Têmpera sobre cartão; 14 x 22 cm) – Chambon sur Lignon 1960
11 – A Floresta (Têmpera sobre cartão; 10,5 x 12 cm) – Paris 1961
12 – Jurema (Têmpera sobre cartão; 14 x 25 cm) – Paris 1961
13 – Corte (Têmpera sobre cartão; 11,5 x 27,5 cm) – Paris 1960
14 – Barranco (Afresco sobre compensado; 38 x 57 cm) – Paris 1961
15 – Pedra Vermelha (Afresco sobre compensado; 16 x 27 cm) – Paris 1961
16 – Colheita (Afresco sobre compensado; 16 x 27 cm) – Paris 1961
17 – Valenciennes (Afresco sobre compensado; 16 x 28 cm) – Paris 1961
18 – O Encontro (Afresco sobre compensado; 22 x 47 cm) – Paris 1961
19 – Incrustação (Afresco sobre compensado; 16 x 28 cm) – Paris 1961
20 – Transparência (Afresco sobre compensado; 21 x 46,5 cm) – Paris 1961
21 – Pedra e Fogo (Afresco sobre compensado; 27 x 37 cm) – Paris 1961
22 – Impressão (Afresco sobre compensado; 0,6 x 0,10 cm) – Paris 1961
23 – Pedra Verde (Afresco sobre compensado; 0,6 x 0,10 cm) – Paris 1961
24 – Floresta de Coral (Folha de cobre e lacre sobre madeira; 14 x 23 cm) – Paris