Exposição 1974.02 – Descartes Gadelha – 18/04/1974
Em plena força do seu talento jovem, que já surgiu surpreendentemente amadurecido, Descartes nos traz agora, transfigurada em cores, esta cidade e suas gentes que ele ama, cultiva e pinta com ternura maior.
Grande na cor, na forma, no desenho, na técnica, na personalidade, Descartes dá a impressão, no primeiro momento, aos que o conhecem pouco, de que se contradiz – quando se atenta para a sua figura saudável e alegre, contrastando com a sua humildade, que carrega, quase numa constante, as marcas de profunda melancolia, numa conotação expressional que chega a ser trágica. Mas o artista e o homem se juntam harmonicamente e o suposto desmentido pode valer aos olhos dos menos avisados. Fiel a si mesmo e ao nosso povo, vai buscar seus temas nos subúrbios – e se identifica, conversa, convive com a gente humilde que ele estuda, analisa e transpõe para o papel, em corpo e alma, em figuras que a sua ótica deforma e valorisa deliberada e inteligentemente num colorido que é seu, muito exclusivo.
Feito Baudelaire, que soube extrair as flores do mal, Descartes vai arrancar do submundo as rosas de inesperada beleza que ele descobre, servido por enorme capacidade de observação, sem deixar escapar o detalhe, que o artista ressalta e enriquece como um mestre.
Numa beira de mar, ou num boteco, num canto qualquer da cidade, um riso de mulher, suave ou amargo, a revolta ou a conformação num velho rosto, um olhar de malícia do moço amorento – é toda uma gama de expressões que Descartes surpreende e vai captando com os olhos, filtrando com a sua sensibilidade. E é a nota pessoal que sabe imprimir ao que pinta que revela o artista consciente, liberto bem cedo de influências, concessões e gratuidades: foi assim que se afirmou seriamente desde os seus primeiros trabalhos.
Aí está, pendurada nas paredes do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, numa mostra belíssima, a sua humanidade, homens e mulheres, jovens, velhos e crianças. Crianças brincando, descendo em carrinhos de ladeira, empinando papagaios, subindo em pau-de-sebo, ou crianças bem cedo se exercendo na luta pela vida, vendendo pirulitos e picolés, confirmando sua imensa ternura pelas crianças, que são seu tema freqüente. E macumbas, feiras, cenas da vida urbana, as nossas tradições populares, nossos folguedos, nosso folclore, romeiros e mendigos, vendedores de cajus e de flores, as comadragens. Tudo tão brasileiro, tão cearense e ao mesmo tempo tão universal na verdade do conteúdo humano.
Vale ressaltar também a beleza das suas paisagens, não só quando as apresenta pura e simplesmente, mas ainda quando apenas as insinua e as utiliza como décor para as imagens que aparecem numa realidade impressionante. A natureza e a humanidade se juntam na obra deste excelente artista, deste lírico que em cada pincelada revela sua alma de poeta, com a grandeza que Deus Nosso Senhor confere a poucos eleitos.
Milton Dias
Peregrinação às origens. Retorno à pia batismal de sua arte. Maio de 1963. Neste Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. “A PAISAGEM CEARENSE”, coletiva organizada por Zenon. DESCARTES MARQUES GADELHA (18.6.43), que, desde menino, “espunha” nos muros e calçadas as caricaturas dos companheiros de rua, alinhava, pela primeira vez, os seus quadros, nas paredes de um salão de arte, ao lado de trabalhos de pintores, já consagrados na cidade. Naquele mesmo 1963, ainda neste mesmo MAUC, realizou a sua primeira individual. Dez anos são passados. A volta, depois de tantos caminhos trilhados. Sempre na crista de todos os movimentos incentivadores das artes em Fortaleza. A fidelidade de DESCARTES à sua profissão de artista sobressai da honestidade de sua obra. Autêntico. Sem concessões cotejadoras de público. Dentro da proposição de fazer. Brotada de sua alma ingênua, mas não primitiva. Esclarecida, mas não pseudo-intelectualizada. Seria injusto enfocar a obra do pintor, exclusivamente pela temática que formalmente a caracteriza. Esquecer o insatisfeito, o pesquisador, o estudioso. Sempre em busca de novas técnicas, de esclarecimento, de ilustração. Com os mestres Zenon ou Chabloz. Saindo pelas praias a pintar com Barrica. A curiosodade do sempre mais. Permanecendo, porém, sempre fiel a si mesmo. Transmitindo a sua mensagem: alma do povo, no descontraimento da vida de rua, nesta sua Fortaleza. Risos, lágrimas, folguedos, trabalho, saudade, melancolia, desilusão, esperança. E o amor? Amor no olhar enlanguecido da namoradinha. Amor-trabalho, nas portas e janelas das taperas das Cinzas ou do Farol. Mas DESCARTES não é apenas um repórter fotográfico, que, apertando um botão, registre um instantâneo. Os instantâneos que a sua alma de poeta coleciona, nas suas andanças de pesquisador, são vertidos na tela, linha a linha, num cavar de perspectivas, num sopro de movimento, na criação de cores e nuances, na valorização da luz. Muito trabalho. Muito amor. Arte.
O MAUC está de parabéns, festejando em sua casa os dez anos de “batismo” de DESCARTES MARQUES GADELHA.
José Julião
Descartes expõe no MAUC com toda pujança criativa transformada em força pigmentar (tons térmicos) que dimensiona flagrantes da vida suburbana.
Sua temática recriminada pela franqueza de alta voltagem social, continua imune aos ataques que primam pela leviandade do enfoque.
Ele, fiel ao compromisso de sua própria sensibilidade, cromatiza na superfície de cada tela os flagrantes e costumes de um “mundo esquecido” pelo mundanismo sofisticado, daqueles que teimam em ocultar as mazelas sociais. Na geometria angulosa de cada tipo, que a fome soube tão bem talhar, o artista apreende o anônimo que se faz popular. Sem pieguismo, Descartes vivifica a atmosfera existencial das rameiras do Pirambu, das floristas do dia de finados, dos beatos sem eira nem beira e das crianças enfermiças das ruas sem nome.
Há em Descartes, no seu expressionismo mágico, ingênuo, uma busca poética que salta de cada estudo que se faz tela. Ele dosa as cores para corporificar o tédio e o otimismo crucificado. Ele extrai do colorido picante da indumentária, dos festejos e folguedos a exuberância estética do geométrico popular. A heráldica triangular das bandeirinhas de quermesse, lembrando “mobiles” de papel crepom, a coreografia visual da “raias” e “cataventos”, nessa festa cinética que enche os espaços azuis do céu suburbano e os claros barrentos das ruelas e pontas de rua.
Descartes é um pesquisador e penitente. Pesquisador dos valores perdidos e ameaçados pelo condicionamento urbano. Penitente, e muito mais devoto, da dignidade humana triturada na engrenagem voraz da cidade grande.
Descartes é assim mesmo, a presença sempre esperada que se faz mensagem e poesia.
Eusélio Oliveira
Descartes Gadelha”Pintar para mim, é um ato obsessivo”, confidencia-me Descartes. E acrescenta: “Se vejo uma cena que me impressiona, sinto a necessidade imperiosa de pintá-la”.
A pintura, para Descartes, é uma forma de catarse pela qual o artista procura alcançar, ainda que deste modo angustiado, uma espécie de libertação interior.
“Sabe, tem-me acontecido, freqüentemente, passar toda uma noite tentando fixar uma imagem na tela. Às vezes só me liberto dela depois de abordá-la sob vários ângulos, até esgotar o tema”.
Descartes é um pintor intuitivo, dotado de extraordinário talento que se sobreleva às falhas técnicas, transformando-as em peculiaridades e maneirismos muito pessoais.
Herdeiro, por espontânea afinidade estética, de Gauguin e Van Gogh, sobretudo do último, embora ressalvadas as evidentes diferenças, este pintor jovem e corpulento com aparência de pugilista peso-pesado mas de cativante mansidão e ingênua simplicidade, é um admirável manipulador de tipos e situações humanas as mais diversas, captadas em suas telas com um misto de humor, ironia, poética ternura e compaixão.
É importante ressaltar o significado eminentemente social da pintura de Descartes, homem do povo, intensamente sofrido, fiel às suas origens, pois que delas não alienou a sua arte, quando, a exemplo de muitos vendilhões que hoje pululam no mundo artístico, poderia encastelar-se confortavelmente, mergulhando na contemplação estéril do próprio umbigo. Preferiu, ao contrário, ser a eloqüente testemunha do seu tempo e da sua gente, imune, formalmente, aos rendosos modismos e sestros de cada hora. Utiliza, à maravilha, o dom que Deus lhe deu, assumindo compromisso com o homem e a sua condição, fazendo uma pintura que, em determinado sentido, pode até induzir em equívoco certa classe de pessoas pelo seu aspecto às vezes pitoresco, anedótico, sentimental ou poético. Mas é aí mesmo, sob a aparência epidérmica, que se encontram surpreendidos em seu estado natural os flagrantes de uma situação social inquietante, que nos sensibiliza para uma tomada de posição consciente e atuante.
Mas, não se deduza, daí, que Descartes é um artista panfletário ou mesmo apologético. É, isto sim, um pintor sério, sem truques nem mistificações – uma grande vocação artística servida por uma personalidade altamente honesta e solidária. Seu compromisso, repito, é tão-somente com o homem (a que ele conhece) e o seu meio.
Creiam, que é verdade: Descartes é o mais importante pintor da sua geração. Quem ainda tem olhos para ver, que veja.
José Maia