Exposição 1978.01 – Gravuras de Calasans Neto – 16/01/1978
(Transcrito do Catálogo)
Não, meu segundo pai, não venho me queixar mas apenas dizer a vosmicê que a ambição e a vaidade fizeram que eu me imaginasse única, sem concorrente em vossa gôiva, sem rival em vossa prensa, reinando em vosso coração. Além de mim apenas as baleias, as cabras, o casario da Bahia, o céu e o mar de Itapuã. Pairando sobre essa beleza toda, vossa filha adotiva, vossa secreta namorada, eu, Tereza Batista, soberba e soberana – jamais teria vosmicê olhos e mãos, pensamento e força de desejo para criar outra mulher, arrancando-a do cerne de madeira, dando-lhe corpo e face.
Bem me avisou minha madrinha Auta Rosa serem os artistas loucos e inconstantes, casta pouco séria, indigna de confiança. Não lhe dei ouvidos e aqui me encontro toda recoberta de chifres como certa noite a outra se encontrou, essa tal Tieta do Agreste. Ciumenta, padeço horrores; não sou fácil de esquecer, quando amo é para a vida inteira, assim amei ao Doutor até a morte e a Januario mesmo além da morte. Não sou igual a essa nova filha e namorada renascida em vossas mãos que se limpa dos chifres com um insulto e uma gargalhada e segue avante. Não nos parecemos em quase nada, em quase tudo somos diferentes.
Não escrevo para me queixar, sei que vosmicê de começo ia fazer somente umas iluminuras para as letras do outro, o que pariu a mim e a ela – apenas umas cabras, um sol azul e uma lua negra. Mas quando a viu deitada sobre a areia, em oferta e ânsia, não resistiu e a concebeu na madeira, menina e moça, pastora com seu cajado, agente de Satanás, sócia de Deus, matriarca e líder. Tudo perdôo a vosmicê, tudo menos ter posto um resplendor de santa na cabeça da pecadora. Por que o fez? Santa, quem tanto errou?
Fico pensando, quem sabe vosmicê tem razão: os erros, os desvios, os mal-feitos não nos impedem de lutar na hora justa, não apagam uma decência inata. Disse que ela e eu não nos parecemos em quase nada, é certo. Mas ao mesmo tempo somos iguais na confiança no ser humano, confiança que nos anima e queima, na paixão pela vida que é dela e minha por ser de nossos pais, do outro, o que nos inventa e de vosmicê que nos veste e despe. Somos duas labaredas acendidas para iluminar caminhos, ela e eu, simples mulheres brasileiras.
Com um beijo me despeço. Mesmo estando queixosa e morta de ciúmes, o beijo é ardente – por mais mulher que ela seja na imensidão da cama, não beijará melhor que eu. Peço a benção à minha madrinha. Sua traída
TEREZA.
P.S. – E o ipicilone, de que tanto ela fala e se engrandece? Vosmicê, tão senvergonha, deve saber como se pratica, seja o simples, seja o duplo. Venha me ensinar como se faz, não me deixe na ignorância e na aflição.
TEREZA.
Bilhete de Tereza Batista a Calasans Neto, enviado por intermédio de JORGE AMADO