Exposição 1982.07 – As Fraquezas do Ser Humano – Sante Scaldaferri – 19/08/1982
(Transcrito do Catálogo)
A forma Plástica e os símbolos do Nordeste na pintura de Sante Scaldaferri
A função ambígua da pintura, sua problemática e sua complexidade, quer como forma imagem e ideia, que como percepção e conceito de espaço, como linguagem e filosofia da cor ou como intuição sensível ou meio de investigação – categorias de substância e circunstância que a definem – caracteriza-se como um texto composto de símbolos, de signos traduzíveis numa sucessão de representações relacionadas ao contexto de um espaço cultural em uma determinada época. A pintura é portanto uma linguagem sígnica e como signo deve ser interpretada. A qualidade da pintura não se manifesta só na figuração ou em sua integração no espaço, nem mesmo em seus valores de cor, planos e volumes, mas sobretudo em seus ritmos não objetivos e sua concreções de signos pictóricos.
A carga signográfica implícita no extraordinário vigor do expressionismo nordestino do pintor Sante Scaldaferri, o primeiro baiano depois de Rubem Valentim a atingir uma expressão autóctone de linguagem pictórica, o que representa uam nova abertura para a pintura no brasil, que se vê assim universalizada pelo enriquecimento e aprofundamento na utilização dos signos constantes de nossas raízes antropológicas, numa equação sociológica e numa dimensão psicológica voltada para a dramaticidade de nossas vibrações éticas. A pintura de Sante Scaldaferri, que convoca as fibras mais antigas e mais fortes e as raízes mais profundas do Brasil, é algo de muito importante e comovente. Pintura que atormenta, violenta, dolorosa como aquele Vidas Secas, o pungente livro de Graciliano Ramos. Pintura carregada de significação e densa de vida, que fez um dos nossos críticos mais lúcidos, Ferreira Gullar, manifestar sua perplexidade diante dela e afirmá-la como uma pintura que choca, que obriga a parar e pensar. Em consequência disso, de uma explosão como essa representada na afirmação de um artista de tal dimensão, impõe-se uma revisão de juízo crítico na definição da nossa linguagem artística de criação em matéria de pintura, considerando-se a tradição do nosso colonialismo cultural e a nossa condição de nação do Terceiro Mundo.
Sante Scaldaferri conhece plenamente o seu mundo. Populosas cidades e paragens desertas e áridas, de vegetação xerófila e calor excessivo viram-no passar, jovem e apaixonado, com a febre do saber e o impulso da emulação artística. Aventuras dramáticas converteram o seu traçado lírico em concisa rudeza e suas figuras estão submetidas a uma profunda flagelação psicológica, adquirindo aspectos estranhos, animalizando-se e sempre transfiguradas, estilizadas segundo o caráter original e anônimo da nossa escultura popular tradicional, o ex-voto, símbolo da fé, emblema místico do povo nordestino. A substância do volume de figuras grotescas e brutais e a cor triste dos tempos contemporâneos são a visão comovida de um artista ligado às ressonâncias profundas do país.
Sante Scaldaferri sente arder em suas veias o sangue da pintura. Sua visão exalta-se e o seu universo ó o Nordeste na carga mítica e simbólica, na essencialidade narrativa e alegorizante de sua pintura íntegra e sensível na percepção, assimilação e convocação de símbolos. A transfiguração simbólica, leitura sígnica de um mundo ríspido, transtornado em sua ecologia e sugocado em seus recursos econômicos pela herança trágica do latifúndio e pelo sectarismo tradicional da mentalidade feudalista do brasil, triste trópico onde uma humanidade flagelada e dilacerada até o mais fundo do ser percorre os duros caminhos da desgraça e da fome, marcha dramática e pré-revolucionária do Terceiro Mundo.
Ambiente heróico de retirantes e cangaceiros, de legendários beatos e cantadores, de poetas repentistas e mulheres rendeiras, o Nordeste, telúrico e metafísico, vasto e unificado pelo infortúnio, pela experiência de clandestinidade e de miséria, pela vivencialidade mística e mítica de um povo numeroso e íntegro no caráter e na tradição de um estilo de vida. Gente nômade, criaturas lúdicas, sensíveis e profundas no amor à poesia e à música, à cerâmica e à xilogravura, no ato de amar, no modo de levantar armas ou na forma de dar-se ao prazer da dança. Gilberto Freyre, o grande e profundo analista da cultura nordestina, diz que ”foi justamente essa civilização nordestina do açúcar – talvez a mais patológica, socialmente falando, de quantas floresceram no Brasil – que enriqueceu de elementos mais característicos a cultura brasileira”. Esse estilo vital nordestino, que através da obra monumental de Gilberto Freyre atraiu o interesse de um dos mais notáveis pensadores do século, Ortega y Gasset, e até apaixonou grandes escritores, como Roger Caillois, na França, desenvolve-se constantemente como processo de nordestização da vida cultural e da criatividade na Brasil. Considerando-se psicologicamente, o Nordeste responde pela melhor qualidade do produto de cultura brasileiro, tal o seu poder avassalador em outras áreas do país, influenciando a música de um Villa-Lobos, o romance de um Guimarães Rosa ou a pintura de Portinari, Pancetti e Djanira. O Brasil continua colonial, o Nordeste é que é o verdadeiro país, pátria dos nossos maiores poetas e escritores e de artistas plásticos importantes e influentes, como os pioneiros do nosso modernismo, Vicente do Rego Monteiro e Cícero Dias, anteriores à semana de 1922.
A luta da pintura brasileira em busca de sua independência, a partir do golpe brutal e academizante da Missão Artística Francesa de 1816, é uma luta antiga e subterrânea, à margem do processo de abastardamento da cultura oficial, da ação equívoca e espúria de certa corrente provinciana de nossa crítica e dos desastres do nosso mercado de arte, primário, alienado, deslumbrado com o kitsch, com vanguardas importadas e manifestações do gay paradise metropolitano. No Brasil se produz em larga escala uma pintura paroquial, anedótica e folclórica, pintura para damas de caridade, para leilões mundanos e salões oficiais.
A pintura não é uma condição de tragédia nem de introspecção, não é panfletária nem crítica. O desenvolvimento das forças criadoras é que determina um estilo, uma linguagem individualizada capas de refletir a inevitável extensão de novas concepções para o contorno mais imediato do homem e sua visão circunscrita ao seu meio cultural. O caso de Scaldaferri é dos mais extraordinários entre outros dois grandes expoentes de uma pintura de autênticas e poderosas substâncias nacionais – Volpi e Valentim – artistas que assimilam os signos, os mitos e magias da civilização brasileira que os faz grandes pintores do Terceiro Mundo.
Wilson Rocha
Os personagens de Sante Scaldaferri
Eis aqui um artista cuja pintura obriga a parar e pensar. Uma pintura que choca. E já é por si só surpreendente uma pintura que consegue isso depois de tudo o que já se fez em matéria de extravagância no campo das artes plásticas. Mas Scaldaferri não é um vanguardista e, se sua pintura nos impacta, não é pela extravagância nem pela busca da originalidade a qualquer preço. Pelo contrário: é por roçar deliberadamente a vulgaridade e dela extrair uma expressão desconcertante e vigorosa.
Baiano, identificado com a criação popular, Scaldaferri tem formação erudita: fez o curso de pintura na escola de belas-artes da Universidade Federal da Bahia e chegou mesmo a ser assistente de ensino na cadeira de anatomia artística. Basta juntar essa informação à anatomia das suas figuras de hoje para se ver o caminho que ele percorreu: o caminho que vai dos convencionalismos estéticos às formas rudes e espontâneas da iconografia popular. Há aqui também uma erudição, um modo próprio de organizar o universo visual e que está, ao mesmo tempo, carregado de significações, só que essas dignificações não apontam para o que se considera belo, refinado, elaborado e espiritualmente ou esteticamente transcendente: apontam para baixo, para o popular, que aqui se identifica com a feitura e a rudeza das figuras e das cenas.
Os personagens de Scaldaferri, saídos de uma iconografia que a cultura ubana submete e marginaliza, surgem, em seus quadros, não como achados arqueológicos, e sim como gente viva, deformada, suja, nua: o brasileiro que o Brasil bonitinho procura esconder.
Ferreira Gullar
Transcrito da Isto É de 9 de dezembro de 1981