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Gilmar de Carvalho – A Paisagem em José Tarcísio: da Observação à Interferência

(Conteúdo do Catálogo)

O compromisso de José Tarcísio com um nordeste de vivências que ele carrega consigo é muito forte. Mas o que lhe dá a dimensão maior do artista é a necessidade da contínua reciclagem. É esta a marca da inquietude do artista. Um mergulho em seu processo criativo nos coloca diante da questão social na arte. Em José Tarcísio tudo é feito com extrema consciência, nada é gratuito. Não que ele seja absolutamente previsível, mas um acompanhamento de seus passos além de mostrar uma coerência de trabalho, nos faz prever os próximos passos de um amadurecimento progressivo, sem a perda da contestação e do “bouleversement” que constituem marcas de artistas que são homens de nosso tempo. A paisagem retomada por José Tarcísio é natureza viva. E as dunas constituem a amostragem por excelência do desenvolvimento de sua proposta. Foi nelas – elemento móvel por excelência – que ele se fixou.

Quando ele subiu às dunas para uma individual no Sandra’s, em 1975, o loteamento era apenas uma expectativa. Mas foi um toque. Depois vieram as placas, arruamentos, lotes, a Vereda Atlântica era o “portal do mar, o mirante da cidade”, nas peças da campanha publicitária. O trabalho de José Tarcísio era o do observador apaixonado, que toma partido e denuncia, com o vigor de um manifesto ecológico. Era a cidade que estava ameaçada no que ela tinha de reserva, as dunas/sentinelas, fortalezas. As dunas e seus cajueiros atrofiados pelos ventos, muricis, gengibre, ubaias. As dunas I coitos de anuns, espetadas de cardeiros de onde se tiram os espinhos para o trabalho da renda.

Outros rumos tomou José Tarcísio: um prêmio de viagem à Europa que ele deixou caducar, uma incursão à “anima” da América Latina, a transferência para Fortaleza, definitiva. Havia pouco a fazer em termos de resistência, a cidade capitulara piante da especulação imobiliária. Depois, uma por uma, as praias cairam, inexoravelmente. O litoral cearense tinha nova feição. Do Icaraí à ameaça da Nova Atlântida (Itapipoca), do Pôrto das Dunas a Canoa Quebrada, um loteamento só. Inútil usar a paisagem como suporte da denúncia. Inútil a denúncia? A arte se retempera nas explosões e manifestações da vida. Permeável, ela assume contornos, formas, como o vento que sopra transportando as dunas. O artista viveu, sofreu, mas não chorou diante de uma cidade que se deixa invadir e desfigurar, antes buscou sua síntese.

Nos marcos do loteamento ele encontrou seu símbolo. A estaca cravada no chão arenoso estava para José Tarcísio carregada de significados. Ela quer dizer posse, nos ermos de uma solidão. É a presença agressiva do homem. E é também tótem, fetiche, signo. José Tarcísio não teme fazer da arma da agressão seu instrumento de trabalho, de interferência. Ele transmuta a estaca. Em suas mãos de sonhador e guerrilheiro ela incorpora e reflete as mil nuances e se torna objeto, sujeito a várias e possíveis leituras, valendo mais que todas as palavras que porventura recorramos na vã tentativa de definí-lo. Ele assume (camaleão?) sua textura própria de madeira, o caráter de baliza, o número do lote, a descendência da areia onde é fincado, a trama da renda, a coroa de espinhos do arame farpado. E muito mais que for possível ver e sentir. E muitíssimo mais que ouse propor este artista que luta com suas armas eficazes e propõe, nacionalmente, este jogo de discussão de nossa realidade e destino. Finca-se no centro da questão o mastro e a bandeira. É um discurso pós-apocalíptico porque trabalha, suicida, com a própria arma agressora que dá aqui e agora novas informações e respostas à questão sempre nova do homem diante do enigma. José Tarcísio decifra-nos e devora-nos. Estamos todos nesta paisagem, diante da desolação e da luta, personagens que escapamos do sonho de um artista e nos fazemos homens. Cabe a nós decidir.

Gilmar de Carvalho
10/2/84

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