José Tarcísio – Roteiro de Criação
Walmir Ayala
Viver, confundir-se. Transpassar-se no tempo, de todos os estímulos esboçados. Ser, como artista, uma sensitiva transitória e receptiva. Assim tem cumprido José Tarcísio, cearense de menos de quarenta anos, seu trânsito. Todos os que o conhecem há quase duas décadas têm visto como tem enfrentado a tirania do esquema, como tem dançado com o dragão e lustrado suas escamas. Sua reportagem plástica, como ele deseja, começa a ser registrada em 1967, quando expôs na galeria G4. O transplante Fortaleza/Rio, e a memória interiorana de poderoso resíduo e muito desgaste, empedraria as imagens do ciclo familiar, a cuja fonte voltaria muitas vezes para se abastecer. A visão transcrita destes óvulos com rostos altivos e magros, recortados de negro, resultaria num mostruário de brinquedos e pintura (Galeria Bonino, 1969), nos quais o lúdico e a paisagem refletiram os cacoetes da pop-art, então se impondo na taba.
Houve quem não entendesse, ao dos brinquedos, a pintura de um interior ampliado de carro, com paisagem ingênua vista pela janela. Vimos nisso o jogo incessante de José Tarcisio, criando o brinquedo e brincando de entrar no próprio brinquedo, esboçando nesta fantasia a projeção da paisagem que seria a constante maior em todo o percurso. Porque o interior do carro de José Tarcísio, em sua simplicidade plástica de formas chapadas e cores puras (o que ele mesmo auto- denuncia como amostra de não saber pintar), teria toda a empostação de um risco espontâneo e singelo, que qualquer criança entenderia como espaço a ser habitado pela imaginação. Por esta época José Tarcísio foi ser fotógrafo da Manchete. Fotógrafo amassando o pão de cada dia com suor e lágrimas. Mas o artista ao lado, à sombra, apropriando-se dos resíduos criativos mais urgentes.
Então surgem interpretações de casamentos, de debates em torno dos anticoncepcionais (assunto em voga), detalhes que a fotografia do cotidiano marca de rude traço, e que o desenho de José Tarcísio confirma e universaliza afetivamente. Ao mesmo tempo realiza uma viagem com os Barcinski (Nina e Stanislaw) por ilhas vizinhas. Realiza várias idas a Quintino, e documenta em desenho o subúrbio e a paisagem oceânica. Realiza um painel para um bar de Quintino, hoje demolido – mural fantástico que o povo e o tempo consumiram até o nada. Influenciado pelo cubismo picassiano traça projetos para decoração de cerâmica (obra não realizada, desenhos conservados). As formas mutantes, a deformação da imagem sob inspiração cubista, dão força aos protagonistas de uma fábula de protesto político. É 1958, ano de grandes conflitos e o rosto dos envolvidos se desdobra massificado em desenhos como bandeiras ou estandartes. Experimenta o spray na pintura, sem entusiasmo. Em 1971 viaja para Paris. Como tem que viver resolve desenhar como qualquer pintor de calçada. Sua temática não interessa ao comprador e ele se condiciona à circunstância. Todos compram flores e ele desenha flores. Tem até hoje guardadas essas flores, com secreto orgulho, como salvados da concessão.
Criticamente encontramos nessas flores o mesmo nível de invenção de sempre, e numa retrospectiva elas teriam que ser cotejadas. Em Londres, a exacerbação é sexual (década de 70) – ficam os desenhos de conotação genital. Detalhes como modelos científicos, sem qualquer margem de sensualismo. José Tarcísio não é um temperamento dado a cantar visualmente as fraquezas (divinas fraquezas) da carne, mas a registrar a ostentação carnal, seja num açougue como num gesto obsceno. De volta ao Rio, é carnaval. Os Diabanjos surgem como fantasia alternativa numa festa alucinante. Paralelamente satisfaz a eterna criança por trás de seus olhos e cria imagens para uma fábula de ficção científica. Libera nesta pauta os polvonautas.Viaja por Ouro Preto e desenha as cidades históricas de Minas. Exercitando a liberdade do fazer, de que se nutre, realiza uma monotipia com uma blusa de Marieta, sua mãe. Em 1972, integra a grita contra a poluição, a grande peste do nosso tempo. Desenha um bicho engolindo a cidade. Marieta, ao mesmo tempo, pede que desenhe um Cristo como os que fazia antigamente. Surgem duas cabeças de Cristo, não como antigamente, mas com a marca da visão do Aleijadinho, mas a linha do calvário nordestino que ele tão bem conhece.
Dedica os desenhos do Cristo a Marieta que continua sendo, a seu lado, uma espécie de consciência calada e instigante, sorrindo e sublinhando com a força do sangue a renovação do alento. Em 1973, ele aprisiona borboletas em acrílico. Borboletas e figuras de barro da arte popular regional, para as quais pinta horizontes de azul e marfim. Com um conjunto de obras, no qual se destacou o objeto “regador”, ganha, em 1974, o Prêmio de Viagem à Europa no Salão Nacional de Arte Moderna. O “regador” mais tarde seria grafado em selo, com grande sucesso. A viagem ficaria enovelada em problemas de ordem burocrática, e ele perderia a oportunidade. Nesta época surgem as pedras. As pedras pintadas, desenhadas, gravadas; as pedras em si, amontoadas em esculturas brutas; pedras como símbolo da aspereza, da seca, da austeridade e da resistência.
Em 1977 enfrentaria nova crise financeira. Vende parte de sua coleção particular – ex-votos nordestinos – para a Campanha da Defesa do Folclore Brasileiro (FUNARTE), viaja à América do Sul – Uruguai – Argentina – Chile – Peru – Bolívia – convive com os índios peruanos e bolivianos. Surgem os desenhos de fábulas místicas e políticas, de um teor evidentemente apocalíptico. Tarcísio estaria, sob as pedras, removendo o amálgama do mundo, despertando a zoologia fantástica do inconsciente coletivo, liberando vulcões e autorizando implosões reveladoras. Como nação ordenadora deste caos surge a maravilhosa (e pouco vista) série dos índios e do sincretismo religioso, que José Tarcísio considera caminho para a pintura. Até então tudo era desenho, diz ele: desenho pintado, desenho tridimensionado, jamais pintura.
Os closes de caboclos e índios, num cromatismo de tabaco amassado, com grandes e simplórios olhos espectantes, erguem uma verdadeira comunidade ancestral, na qual José Tarcísio fixa fisionomias de seus contemporâneos, transpondo uma possível imagem arcaica e dramática do tempo presente. Começa então o aprendizado humilde e árduo da pintura. De uma viagem a Fortaleza, no ano anterior, traz o acúmulo de imagens – as praias, areias, mato rasteiro (sobrevivência de uma natureza despojada e agressiva). Avança pela concepção das paisagens que hoje expõe, mapas que o gesto revela em variada gama de pincelada, contracenando a crespa tinta primitiva do verde com a penteada orla de ouro das areias. Ao fundo o azul que se eleva. O comportamento do pintor equilibra-se entre o racional de uma pintura elaborada e o ingenuismo de uma abstracão cromática, liberdades a que José Tarcísio ainda e sempre se permite. Desta paisagem, aparentemente tão banal, extraimos, sem dúvida, o incomum. Nada em nossa paisagística se parece a ela.
O fio desta corrente de fatos e vivências aqui registradas impõe acima de tudo um plano maior de coerência. Não me furto de pensar em Ivan Serpa, que também atendia com espontaneidade e prazer às sugestões do instante. Serpa mais rígido e perfeccionista. Tarcísio tem uma asa de cigano para temperar o anjo. Mas a coerência ressalta, a de ter vivido cada fase da vida como se fosse uma vida toda, e de imprimir as tônicas básicas de uma visão comprometida e pulsante em cada hora do transe, com aquele sorriso de olho brilhante e peito forte escudo que se impõe ao desacerto para forjar um fruto.
Walmir Ayala
Rio, janeiro de 1979