Exposição 2025.9 – José Guedes: Memória e Resistência
A exposição José Guedes: Memória e Resistência trouxe ao Museu de Arte da UFC instalações, objetos e pinturas do artista José Guedes em vertentes conceituais pouco conhecidas localmente, propondo, assim, nas palavras de Roberto Galvão, quem assina a curadoria, “retirar o visitante da posição de simples e passivo observador, desafiando-o a pensar, remexer os seus próprios conceitos e, como um parceiro do artista, sonhar outras obras, criar, complementar ou expandir o trabalho que analisa”.
Com mais de cinquenta anos de carreira, José Guedes Martins Neto, nascido em Fortaleza-CE, no dia 10 de abril de 1958, tem como marco artístico inicial a participação no Salão dos Novos de 1973, quando ganhou prêmio na categoria de desenho e pintura aos quinze anos de idade. Destaca-se na longeva trajetória as contribuições como gestor em equipamentos culturais, tendo dirigido a Casa de Cultura Raimundo Cela (1986 a 2000) e o Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar (1998 a 2003 e 2007 a 2012). Possui obras em diversas instituições no Brasil e no mundo, a exemplo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte de Santa Catarina, Museu de Arte Moderna da Bahia, Museu de Arte da UFC, Museum of Latin American Art (Califórnia), Daros Latinamerica (Zurique), Neuhoff Gallery (Nova York), International Mobil Madi Museum (Budapest) e IVAM (Valência).
Período de exibição: 23 de agosto de 2025 a 3 de outubro de 2025
Depoimento de Roberto Galvão, curador de José Guedes: Memória e Resistência:
Estou num momento da minha vida que as memórias parecem querer ocupar todos os espaços da minha mente. Penso em escrever algo sobre a produção artística de José Guedes, que acompanho faz muitos anos, e logo aparece um turbilhão de imagens como num antigo video clip, fazendo uma varredura explosiva de flagrantes com ou sem conexões muito lógicas: um jarro com espadas de São Jorge, uma gilete cortando o punho, detalhes de jangadas, cordas azuis, texturas, cores, vídeos, objetos, livros, desenhos, esculturas; numa roleta de imagens, pessoas, obras de arte, que giram sem parar. Pé no freio. O que tenho que escrever é sobre o José Guedes de hoje e não do quase menino que aparecia e desaparecia na Casa de Raimundo Cela quando eu era o diretor.
É sobre o artista profissional, plural, que não tem preocupação de se deixar amarrar por um estilo ou maneira de fazer ou técnica por empregar, que tenho que escrever. É sobre um artista que parece dominar todas as cores, todas as formas, todas as matérias, todas as texturas, para materializar as suas ideias.
Hoje, o então estudante de Direito que Dona Alva dizia eu ser o seu irmão mais velho, virou um artista maduro, despreocupado com o que se diz e fala sobre o que ele faz. Ele tem fé no que perfaz e impõe o seu jeito de criar e realizar.
Ungido pela Arte, tem consciência de que o artista é ele. E que tem por função social propor coisas do jeito que imaginar. E que pode e não deve se deixar controlar por tendências e seguir caminhos já traçados. É ele que traça o seu percurso, que vai riscando o discurso da sua carreira com as cores e materiais que vai encontrando pelos caminhos da sua vida, sem medos de entrar por estreitas aberturas de aparência inóspita ou por portas que se abrem para mostrar paisagem que podem ser cheias de curvas e abismos. Ele sabe como vai ultrapassar todos os perigos.
O José Guedes que eu quero falar é o Guedes das instalações que frequentam as bienais, museus e galerias do mundo. É o Guedes que trabalha com ideias tensas que se constroem em nossas mentes quando vemos as suas obras, nos obrigando a pensar e refletir sobre conceitos abstratos, por vezes politizados e cortantes, que emanam de suas instalações, objetos, “ready-mades” ou “ensemblages”[1]. É o José Guedes das não pinturas. O Guedes das pinturas é outro, que passa tardes e noites dedicando-se ao seu ofício de pintar no seu ateliê.
Por isso muito gostei das observações do crítico equatoriano Hermán Pacurucu sobre o trabalho atual de José Guedes. No texto curatorial de Pacurucu, ele afirma que o artista, na coleção que apresenta na recente exposição de São Paulo, “revela uma mudança do objeto artístico para uma experiência expandida”. Ideia que concordo plenamente.
Eu diria, em outras palavras, que Guedes agora interessa-se menos pela materialidade do objeto artístico, enquanto arte concretizada, preocupando-se mais com um lado maior, mais expressivo, de introduzir na mente do observador pensamentos mais profundos e efetivos, que simplesmente observar o sentido mais superficial das obras, sendo tocado apenas pela beleza dos objetos. Ver belezas é um exercício bom, faz bem ao espírito. Mas o trabalho atual de Guedes é mais que isso e se propõe a retirar o visitante da posição de simples e passivo observador, desafiando-o a pensar, remexer os seus próprios conceitos e, como um parceiro do artista, sonhar outras obras, criar, complementar ou expandir o trabalho que analisa.
Pacurucu, em outras palavras, fala que o lugar da mostra de Guedes transforma-se, pela locação de suas obras, de espaço expositivo em espaço de criação coletiva: “a noção de autoria se dissolve, e o que emerge é um espaço compartilhado de criação coletiva”. Brilhante análise, que concordo integralmente.
No seu trabalho atual, assim como ocorreu na fotografia, onde muito nos libertamos da técnica pelo amplo desenvolvimento da tecnologia, Guedes, embora seja grande possuidor de domínio no campo das técnicas artísticas nos seus fazeres atuais, nas propostas artísticas que nos apresenta, pelo enorme desenvolvimento da sua própria Arte, está livre da necessidade ou dependência de domínio técnico.
Guedes, na mostra da coleção que apresenta no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc), também não mais se deixa prender à sacralidade dos objetos artísticos e nos emancipa e alforria. Quando observamos as suas criações, ele nos oferece a possibilidade de também sermos criadores livres. O forte está nas ideias, nos conceitos, não na materialidade do objeto em si. Ver a arte de Guedes é uma libertação.
Essa exposição de José Guedes que a Universidade Federal do Ceará nos apresenta através da sua Pró-Reitoria de Cultura, no Mauc, é uma verdadeira aula para a Cidade e, em especial, para o público de artistas, estudantes, professores, e todos que tenham a oportunidade de vê-la.
Roberto Galvão (curador da exposição)
[1] A palavra inglesa “ready-made” traduzida para o português seria “pronto para usar”, que não contém a ideia do conceito que ela carrega quando usada no mundo das artes, que seria de objeto pronto. Já a palavra francesa “ensemblage” geralmente se refere a um grupo de elementos que, unidos num objeto artístico, combinados, transmitem uma mensagem ou criam um efeito estético específico.