Chico da Silva e a escola do Pirambu sob a ótica de Roberto Galvão
Thayná da Silva Mota
Estudante de História – Licenciatura/UFC – Bolsista do Núcleo Educativo do MAUC
Saulo Moreno Rocha
Museólogo – Coordenador do Núcleo Educativo do MAUC – Orientador
A obra “Chico da Silva e a Escola do Pirambu”, de autoria do artista, historiador e crítico de arte Roberto Galvão, é resultante de um belíssimo trabalho de monografia, apresentado ao Curso de Especialização em Arte-Educação da Universidade Federal da Paraíba, o primeiro do gênero realizado no Nordeste. Publicado em 1985, foi também o primeiro livro do autor que, depois dele, já publicou inúmeros outros, que se tornaram referências para a História da Arte cearense. Dividido em três partes, o livro apresenta a vida e os percursos do artista que modificou os conceitos de arte e se tornou um nome emblemático da chamada “Arte Primitivista”.
Nascido em 1º de maio de 1950, Roberto Galvão Lima é um artista plástico cearense com forte ligação com o Museu de Arte da UFC. Em 2019, apresentou na instituição a exposição individual “Mato Branco”, inaugurada em 19 de junho, bem próximo ao aniversário de instalação do museu, que completou 58 anos no dia 25 do mesmo mês. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará e graduado em História pela mesma Universidade, Roberto G. trabalha desenvolvendo atividades de ensino e pesquisa nas áreas de História e Arte, sendo um importante colaborador das artes plásticas cearenses, tendo realizado inúmeras exposições e doações de obras ao Mauc.
A primeira parte do livro desenha para nós o que Roberto G. designa como um provável roteiro da vida de Francisco Domingos da Silva, o Chico da Silva. Nascido em Alto Tejo, no Acre, provavelmente em 1910, Chico era filho de Minervina Félis de Lima, cearense, e de Domingos da Silva, um índio peruano. Com seis anos de idade, deixa a Amazônia e passa a viver em Quixadá, Sertão Central do Ceará, posteriormente se mudando para Guaramiranga e, por fim, fixando residência em Fortaleza onde passou sua juventude e maioridade, até seu falecimento, em 5 de dezembro de 1985.
Pintor das paredes caiadas das casas de pescadores da Praia Formosa, no Pirambu, com giz, carvão e mato à sua disposição, Chico conheceria a partir dali aquele o qual daria início e impulso à sua carreira artística e lhe tornaria reconhecido mundo afora, Jean Pierre Chabloz, suíço que veio ao Ceará atuar na arregimentação de trabalhadores para a extração de borracha na Amazônia, parte do esforço de guerra, no início da década de 1940. Em sua exteriorização emotiva e espontânea, com a temática constituída por pássaros, cobras e elementos que remetem às lendas e à vida amazônica e nordestina, o crítico de arte viu em Chico a expressão mais autêntica e a promessa de renovação artística daquilo que seria considerado por muitos a “primitividade” da arte brasileira.
Já próximo e envolvido com Chabloz, Chico sofre diversas instabilidades na sua carreira artística. Com as idas e vindas do suíço, entre Brasil e Europa, sem condições de se manter da sua arte, Chico abandona-a e trabalha em diferentes funções. Em 1959, com o retorno de Chabloz à Fortaleza, Chico da Silva é apresentado por ele ao reitor e fundador da Universidade Federal do Ceará e do Mauc, Prof. Antônio Martins Filho, que o contrata como servidor, período em que o artista do Pirambu produz inúmeras obras que, quase em sua totalidade, se encontram salvaguardadas pelo Museu.
Após algum tempo, abandona o emprego na Universidade, que lhe abrira um amplo horizonte de possibilidades profissionais. Chico era um rei, segundo Roberto Galvão. Requisitado e muito solicitado pelo universo burguês e do turismo, na intenção de satisfazer as demandas que giravam em torno da sua arte, o artista cria seu primeiro atelier com o apoio de jovens iniciados e atraídos pelo seu trabalho, em sua maioria residentes do Pirambu. O trabalho coletivo, porém, geraria mudanças na sua pintura, uma vez que os caracteres da arte de seus ajudantes e o surgimento de novas temáticas se fixariam em seus produtos finais. Sem que ninguém soubesse da existência dos ateliês e oficinas que então se formaram, já não mais sob a proteção de Chabloz, Chico dá continuidade à sua carreira artística e expõe individualmente em vários lugares.
Em 1966, ocorrera aquela que seria uma das primeiras de muitas polêmicas que envolveria Chico e seus ajudantes: sua mulher, Dalva da Silva, denuncia à polícia de Fortaleza a existência de quadros falsos em exposição na Petit Galeria, no Rio de Janeiro. Mesmo após o episódio, no mesmo ano, em Veneza, seus 12 quadros – hoje expostos no Museu de Arte da UFC – ganharam o importante prêmio de menção honrosa na Bienal, apesar das perseguições e interdições que sofreu por parte da delegação brasileira, detalhadas por Galvão a partir da troca de cartas entre Clarival do Prado Valadares e Haroldo e Heloísa Juaçaba.
Com a pouca dedicação do artista devido aos seus problemas com o alcoolismo, a resposta frente à enorme procura pelos seus trabalhos seria dada pela produção de Sebastião Lima de Paula (Babá), José Claúdio Nogueira (Claudionor), José Garcia dos Santos Gomes (Garcia), José Ivan de Assis (Ivan), Francisca da Silva (Chica da Silva) – sua filha – e, mais tarde, Maria Augusta, que protagonizaria outro escândalo em relação a Chico, em 1969. Juntos, formaram aquilo que seria conhecida como “Escola do Pirambu”, caracterizada por Galvão como um modo de produção coletiva de “Chicos da Silva” e que se vinculava aos valores comunais partilhados pelos grupos periféricos de Fortaleza.
Agravado seu problema com as bebidas e com a saúde bem debilitada, Chico também não foi poupado da exploração por parte da indústria com a excessiva comercialização dos quadros que levavam sua assinatura. Satisfazia-se com a vaidade da fama mesmo sem o claro comprometimento com sua arte, segundo Galvão. Àquela altura, Chabloz também declara à imprensa seu desapontamento, sendo incisivo ao dizer que os quadros de Chico já não valiam um centavo, pois sua arte havia sido transformada em indústria. Para Roberto Galvão, todos porém tiveram uma parcela de culpa nesse caos que se tornara a vida de Chico.
Embora a sacralização do termo “primitivista” seja objeto de crítica, Roberto G. localiza o seu surgimento ligado ao modernismo e sua perspectiva de retorno e apropriação das artes populares, como observa-se na discussão que faz na segunda parte de seu livro, intitulada “Um universo em três dimensões”. A consciência de valorização das artes que fugiam aos padrões europeus foi, segundo ele, o que possibilitou a reinvenção da pintura e a descoberta de talentos, como Chico da Silva.
Na análise do escritor, Chico era visto como um “iluminado” pela beleza impressa na sua arte, principalmente por ele ter sido analfabeto e não ter tido acesso à educação formal. Era um homem que, por intervenção de terceiros, procurou cumprir, ainda que sem muito êxito, um papel imposto no seu contato com a burguesia e com um novo sistema que lhe era estranho. Ao nascer para o mundo burguês, Chico não soube lidar com a malha cultural do processo e seu desvio resultou em punição. Dentro da lógica de normatividade, ele não era comum, conforme analisa o autor, e o “choque cultural” gerou inúmeros desarranjos em sua existência.
Roberto Galvão divide a produção dita de Chico da Silva em duas fases, já que não existem obras anteriores ao contato dele com Pierre Chabloz. A fase individual, em que o suíço lhe providencia novo suporte mas não altera-se o caráter mítico e poético do artista e a fase da Escola do Pirambu, quando desenvolve-se a temática elaborada por seus discípulos atrelada ao desenvolvimento daquela referente ao período individual. Apesar do trabalho de Chico ser completamente distinto da produção coletiva da Escola, existe grande dificuldade de estabelecer as especificidades dos envolvidos e grande parte da produção divulgada advém dela (conforme o autor, cerca de 90 %).
Chico da Silva é patrono de uma das salas do Museu de Arte. Irreverente, através de sua arte é possível ver a materialização do universo temático na dinâmica do seu colorido e das suas formas. Os elementos que compõem seus quadros movimentam-se em formosa “dança rítmica”, como diria Maria do Carmo Barreto, “o intérprete de uma mitologia diluída na tradição”, segundo Clarival Prado Valladares. Suas obras abrem um amplo campo de possibilidades interpretativas, como bem asseverou o artista: “… a vida ao quadro, quem dá é a própria pessoa, que olha e diz o que é.”, conforme consta nas declarações de Chico, presentes na terceira parte do livro, dedicada ao anexos.
A história de Chico da Silva narrada por Galvão revela um artista vibrante, com suas singularidades e dificuldades de acomodação e integração ao mundo burguês e capitalista, com seus sonhos e devaneios. A partir das problemáticas e sucessos, dos erros e acertos, por meio do livro visualizamos uma trajetória complexa, nos quais evidenciam-se os inúmeros agentes do universo da arte e suas operações. O livro de Galvão é uma referência e deve ser leitura obrigatória para todos aqueles que se interessem pela arte brasileira, especialmente por apresentar, a partir da história de Chico, inúmeras reflexões valiosas sobre o universo artístico e suas vicissitudes.
Neste 1º de maio, parabenizamos Galvão por seus 70 anos de vida e registramos os nossos agradecimentos por suas inúmeras contribuições às Artes. Como artista, professor, pesquisador, gestor, ele sempre atuou a favor do campo cultural e, nas mais diversas funções que exerceu, deu e tem dado provas de sua paixão pela cultura cearense, sendo um parceiro e amigo do Mauc, relação da qual nos orgulhamos. Em 2020, comemora-se os 110 anos de nascimento de Chico. Homenageado no carnaval, no Salão de Abril e em outros âmbitos, o “índio do Pirambu” segue provocando, com seus dragões e seres míticos, com suas cores inebriantes e sua força amazônico-nordestina.
Galvão 70, Chico 110, dois artistas, duas vozes que se fazem presença e urgência na arte brasileira. “Chico da Silva e a Escola do Pirambu”, após mais de 30 anos de sua publicação, segue como uma obra fundamental e, conforme nos informou Galvão, está sendo atualizada, revisada e será relançada. O aniversário é do autor, mas o presente quem ganha somos nós, amantes e estudiosos das artes que, certamente, teremos a oportunidade de acessar novas interpretações e revelações da vida do amazônico radicado cearense. Para finalizar, destacamos um trecho do livro, no qual o autor apresenta uma síntese sobre o artista:
“Pode-se concluir que a obra de Chico tem uma alta carga poética que transcende as recordações do Alto Tejo, as fabulosas amazônicas, as próprias fantasias do artista. E que Chico é um amálgama de mitologias, sonhos, e recordações de uma Amazônia distante, com signos, cores e códigos de um Nordeste vivido, sofrido e presente. E, somando a tudo isso, os conflitos e as angústias da orfandade, da grande viagem, da mudança da Amazônia para o árido Quixadá e da quase marginalidade.” (p, 58)
Acesse aqui a obra! Agradecemos a Roberto Galvão pela gentileza de autorizar a disponibilização da obra digitalizada ao público. O exemplar original pertence ao acervo da Biblioteca Floriano Teixeira do Mauc.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
GALVÃO, Roberto. Chico da Silva e a Escola do Pirambu. 101 p. (Monografia) – Curso de Especialização em Arte-Educação na Universidade Federal de Paraíba. Fortaleza: Secretária de Cultura e Desporto, 1985.
ROBERTO Galvão. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9853/roberto-galvao>. Acesso em: 13 de Abr. 2020. Verbete da Enciclopédia.