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Museu de Arte da UFC – Mauc

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Exposição 1981.05 – Calasans Neto – 23/11/1981

(Transcrito do Catálogo)

Um Sabor de Lenda

Confesso que apenas conhecia e nome – e ainda vagamente – Calasans Neto antes de receber o livro desse velho amigo Jorge Amado: “Tereza batista Cansada de Guerra”. E isto – é preciso dizê-lo – acontece todos os dias entre Portugueses e Brasileiros, tão apregoados como irmãos. O conhecimento de uns pelos outros, apesar da língua e do muito que temos de comum, acontece quase sempre ao sabor do acaso. Julgo perdermos bastante com esse silêncio e desconhecimento mútuo. A confirmá-lo está o acaso de Calasans Neto. Aqui fica expresso o meu abrigado a Jorge Amado.

Ao admirar as xilogravuras de “Tereza Batista Cansada de Guerra”, eu que sempre pensei ser contrário à ilustração de obras de ficção – cada leitor imagina, “vê”, as personagens e factos, quantas vezes, até, “contra” a visão do próprio autor -, pela primeira vez me senti obrigado a mudar de ideia e a aprovar o que antes me havia sempre “incomodado”. É que, subitamente, perante a mim, estava uma interpretação de um texto que não me forçava a reconhecer personagens ou factos narrados, mas a encontrar, sim, um contraponto plástico que me ligava às raízes da própria história. À força telúrica dessa personagem impressionante que é Tereza Batista, à sua vida e às suas aventuras, Calasans Neto emprestara um sabor de lenda, simples e quase ingênua, vincando ainda a sua profunda humanidade, sem contudo se manter alheio a uma crítica social, por vezes acerada e dramática, que a obra sugeriu. Com o seu traço vigoroso, quase brutal, conscientemente inábil, dir-se-ia que as suas gravuras são uma primitiva saga plástica encontrada algures, perdida no tempo. Mas não nos enganemos. Acontece, sim, que Calasans Neto encontrou a verdadeira forma plástica, de violentos contrastes, que melhor se podia adaptar ao comentário contrapontista da obra de Jorge Amado.

Para ele, Tereza Batista não é só a personagem criada por Jorge Amado, não é só aquela mulher que o mundo do seu tempo repeliu e lhe deu fel para a vida, mas todas as mulheres do Brasil que, como esta Tereza batista, o mal do mundo fez Jorge Amado, correspondeu Calasans Neto com o tom exato, a medida justa, o traço definidor de uma história escrita pelo povo para o povo. Não ficou, no entanto, por aí a sua interpretação. Da crueza e aparente ingenuidade das suas xilogravuras – como se tentasse reencontrar a raiz popular da gravura – não estão nunca alheios o trabalho consciente e intencional do verdadeiro artista e a poesia que irradia a cada passo dos seus desenhos. Ele identifica-se com o povo, dignificando-o em força e em beleza. Como escreveu Glauber Rocha sobre Calasans Neto, “um artista é gente, tem carne e osso e sexo – e uma obra de arte é a soma destas coisas e da consciência que o homem tenha da sua história e da sua existência”.

Nenhuma palavra pode melhor definir o significado humano da obra deste artista que esta exposição apresenta pela primeira vez em Portugal.

Rogério de Freitas
Lisboa 1973


A terra vermelha, o verde escuto e sumarento da vegetação, todos azuis de céu/mar. Mas quem dá cor à paisagem é o sol dourado. O sol das gravuras de Calasans Neto, artista que é, antes de mais nada, o intérprete de uma determinada área paisagística e cultural. um artista estranhamente ligado à natureza e à cultura de uma região, e cuja criação se encaminha ao universal através desses enraizamento.

Que região é essa, expressa nas gravuras de Calasans Neto? De modo geral, a Bahia. Com suas cabras, ele sugeriu o sertão; com os rochedos de “Taigara”, a Pituba e seus arrecifes. Também tem mostrado Salvador no horizontal de seu casario. Agora, traduz o microuniverso de Itapuã, um dos vários territórios mágicos de que é composta a Mágica Cidade. Todos eles fundidos num só, mas passíveis de se decompor, como a luz ao atravessar um poliedro de cristal.

Itapuã-mar, Itapuã-céu, Itapuã-terra. no quarto álbum desta série, Calasans apresenta um outro aspecto de seu presente território de residência: Itapuã-sol. E quem conhece Salvador sabe que a explicação final para a espantosa beleza da Cidade, para além de qualquer outro elemento, está a luz. Fonte da cor, a luz que vem deste sol místico, sol às vezes quase negro, negro fogo, a sarça ardente dos pensadores religiosos. O sol das mais recentes gravuras de Calasans Neto.

Presente em todos os trabalhos do no álbum, o sol pede uma entrega religiosa, lembra ritos antiquíssimos de morte e renascimento, verdades básicas. Como indicam os quatro elementos a que se reporta a série – água, ar, terra, fogo (sol) já identificados pelos filósofos gregos pré-socráticos como a origem primeira das coisas.

É marítimo o sol de Calasans, sendo litorâneo o micro-universo da Itapuã. E esse mar, o Oceano Atlântico, tem do outro lado, muito próxima, a África. Cujos mitos assimilados o artista vem interpretando. E que aqui aparece, para citar só um exemplo, nesta pomba em relevo vinda diretamente do candomblé.

A constelação simbólica das gravuras de Calasans Neto inclui imagens de saveiros, ondas estilizadas, o farol, uma lagoa, troncos de coqueiros decepados – ícones de um mundo paisagístico/cultural. A tudo eventualmente presidindo uma certa atmosfera onírica e também noturna – antítese ou polo oposto a ressaltar o sol prevalecente, uma doçura de noite antecipada.

O cenário é tão grandioso que a gente de Itapuã às vezes parece inteiramente engolfada e absorvida. É rara a figura humana apresentada diretamente nas gravuras e Calasans. Mas a própria linguagem plástica do artista o filia a esse homem local de uma tradição cultural onde ainda se mantém o fabrico à mão, objetos de uso burilados em arte.

Há nas gravuras de Calasans Neto uma marcada sugestão dessa voz popular e primitiva vinda da cultura onde o artista trabalha, uma voz tão próxima da natureza e, por isso mesmo, das coisas imortais. Como o ininterrupto quebrar das ondas de Itapuã, uma voz de eternidade. O que existe de inocência/paraíso na arte do gravador é essa voz do povo/artista/criança.

Menino Navegador, profundamente versado nas artes da Marinha, ele vai trabalhando com mão telúrica e marinha. E, com essa bagagem, seu neo-paisagismo não quer ser apenas descrição e decoração, mas se volta para uma busca de verdade fundamental da natureza e da cultura de sua área, em seus elementos básicos.

Deslumbrando com a luz de seu sol, banhado de claridade, à beira mar com os gregos antigos e os portugueses afeitos ao oceano (há uma semelhança de pathos), Calasans Neto exercita as artes de sua Navegação.

E lá vêm os saveiros, a paisagem é luminosa mas antecipa o luar, quem contempla essas gravuras ouve um som rouco e marítimo de búzios soprados ao entardecer – velas a todo pano, barlavento, sotavento – enquanto o sol gigante e vermelho ilumina, ao longe, o perfil da cidade (a Cidade), antes de mergulhar nas águas.

Sonia Coutinho


Catálogo da Exposição Calasans Neto 1981

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