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Universidade Federal do Ceará
Museu de Arte da UFC – Mauc

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Exposição 1984.04 – Expressionismo e Arte Brasileira – 26/06/1984

(Transcrito do Catálogo)

O Expressionismo, cujas raízes remontam as Gótico Tardio (Século XV) e, de modo especial, às criações alucinantes de Grünewald (+1528), formou-se no leito principal da arte alemã. Passando pelos pintores românticos, Caspar David Friedrich (1774-1840) e Philipp Otto Runge (1777-1810), recebendo o selo de mestres impressionistas como Liebermann, Slevogt e Corinth, culmina numa reação exaltada contra a tradição e numa forma artística que, na definição de W. Grohmann, “reintroduz na representação o drama humano e, no lugar do cânon mais racional das formas, com seu equilíbrio de sensações coloridas, instala um cânon irracional.”(1) Deve-se mencionar, ainda, o papel que nele exerceram Van Gogh, Gauguin, e o norueguês Edvard Munch, para alguns o verdadeiro precursor dessa corrente.

Semelhante estilo correspondeu, n norte da Europa, a um pathos  demoradamente incubado, ao passo que sua inserção em nosso meio ocorreu por via de enxerto. Mas o que começou como adjetivo da cultura nacional transformar-se-ia, devido a fatores sócio-econômicos afins e uma auto-consciência repentinamente desperta, numa realidade substantiva, a propiciar o aparecimento do primeiro pintor brasileiro absolutamente internacional: Portinari.

Anita Mafalti constituiu um caso de nossa evolução (ou revolução) artística. Tudo principiou com o impacto, sofrido por ela, diante de uma grande exposição de pintura moderna na Alemanha, aonde fora aperfeiçoar seus conhecimentos: “Eram quadros grandes”, declarou. havia emprego de quilos de tinta e de todas as cores. Um jogo formidável. Uma confusão, um arrebatamento, cada acidente de forma pintado em todas as cores, o que para mim foi uma revelação e minha primeira descoberta. (…) Procurei o homem de todas as cores, Lovis Corith, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor.”(2)

Seria, porém o expressionismo a mera descoberta da luz e das cores? a descrição de Anita coincide, em linhas gerais, com a de Wilhelm Hausenstein quando este aponta “algo soberanamente animal” as telas do mestre alemão: “Agrava-nos esse desprezo por toda cultura preocupada em polir e limitar toda finura sentimental; esse repúdio veemente a tudo que é rígido, acadêmico e convencional; essa anarquia animal.”(3) Mas, eis o milagre: Anita não fica na fascinação hipnótica da luz, no caráter centrífugo desses elementos ainda impressionistas.

Após sua exposição de 1914, viaja aos Estados Unidos. Na “Independence School of Art”de Nova Iorque, dirigida por Homer Boss, recebe o choque definitivo: “Você tem medo da morte?”- indaga-lhes Boss. “Não”, responde-lhe a jovem brasileira. Boss prega-lhe um grande susto, levando-a num barco para perto dos rochedos em alto mar. De volta do passeio, diz-lhe: “Você pode pintar”.(4) Dessa época são algumas de suas mais conhecidas criações: “O Homem Amarelo”, “O Japonês”, “A Estudante Russa”, “O Farol”. regressando ao Brasil, organiza a mostra de nossa história, acabando por merecer o apelativo que lhe deu um crítico: “protomártir da nossa renovação plástica”.(5) “É de todos conhecido o artigo que lhe dedicou Monteiro Lobato, posteriormente publicado sob o título: “Paranoia ou Mistificação?”, onde, entre outras coisas, se lê: “Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura. (…) A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-se à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro.”(6) Com isso estava proclamada nossa independência estética.

Em linhas gerais, o expressionismo delineia seu rosto entre nós após a Revolução de 30. Não é paradoxo associá-lo ao romance realista dessas época. Graciliano Ramos traduz-se opticamente na obra de alguns artistas. Embora o autor de “Vidas Secas”não deforme a realidade, pratica a deformação na medida em que essa realidade é deformada. Podemos, pois, sustentar que existe uma sorte de expressionismo clandestino em Graciliano, em cuja ficção o ufanismo cede lugar à contorção e à mordacidade, e o bonito se metamorfoseia no grotesco. O mesmo sucede com os demais autores que, nessa época, interpretam a situação social do país.

Aos poucos, engendra-se no Brasil uma vocação expressionista. Axel Leskoschek, gravador austríaco aportado ao Rio em 1940, fomenta-se com seu objetivismo minucioso – um “miniaturista”, chamou-lhe Lívio Abramo(7) – dotado de agrudeza psicológica e perpassado por crispações emotivas. Leskoschek deflagra novas orientações em discípulos talentosos, especialmente Ivan Serpa, Edith Behring, Fayga Ostrower, Misabel Pedrosa, e Renina Kratz, cujas séries “Favela” (xilogravuras, 1956) e “Cárceres” (litografias, 1978) se impregnam de em acento doloroso à maneira dos personagens de Käthe Kollwitz. Para emergir completamente, essa vocação necessita apenas de um impulso. É então que os mestres alemães, banidos de sua pátria, deitam raízes no solo ubérrimo de uma nação, mais e mais atenta as duas chagas e traumas.

Lasar Segall já estivera no Brasil em 1912 e, a bem dizer, foi – em termos cronológicos – o verdadeiro inaugurador desse estilo em nossa terra. Mas, como o reconhece Mário de Andrade, as mostras de São Paulo e Campinas, de 1913, não provocam a menor reação: o Brasil não o viu.(8) À semelhança da consciência velada de morfologia, de Teilhard de Chardin, em breve a poderosa inspiração do genial lituano se reintroduz na evolução nacional. Outra vez, sem ruído. Volta a expor em São Paulo em 1924. Sua lição não será mais esquecida. O antigo membro da “Freie Sezession”de Berlim, o apaixonado companheiro de Georg Grosz e Otto Dix na “Neue Sachlichkeit” de Dresde – “pintor de almas”como lhe chamou um crítico do jornal de Campinas(9) – torna-se, ao contacto da paisagem tropical, um pintor físico, de bananeiras, cactos, animais. Que diferença entre a visão pontiaguda de construção “pensadíssima”, para utilizarmos uma expressão de Mário de Andrade(10), se envolve de resplendor e penugem. Há humanista de Segall não tarda a irromper-lhe na série “Mangue (1943, 42 pranchas de desenhos impressos em zincografia, 3 xilogravuras e 1 litografia), esse Saltério de nossa excomunhão social, iluminado soturnamente pela lucidez e pela ternura, sobre cujas águas das paira o espírito de Deus, ou , mais genericamente, as relíquias de uma humanidade vencida, porém altiva, num estacismo quase bizantino de posturas.

Logo depois é a erupção vulcânica dos quadros épicos: “Pogrom”, “Navio de Emigrantes”, “Guerra”, “Campo de Concetração”, “Êxodo”, “Condenados”, só comparáveis às mais grandiosas criações de Portinari.. É possível que estas obras, somadas às paisagens de Campos do Jordão e às “Florestas”do final de sua vida, constituam, não só as realizações mais altas da pintura nacional, como as verdadeiras bases de sua evolução posterior, inclusive do Informalismo e Construtivismo.

“Navios de Emigrantes” é a nossa Capela Sistina. A despeito de suas limitações, condensa em si a dor da humanidade, elevando-a à universidade de uma abstração metafísica. Haverá, contudo, algo menos mítico do que essa visão apocalíptica? A rela possui o detalhismo das cenas bíblicas, seu prosaísmo e concretudo, mas igualmente sua amplidão cósmica, aquele toque de espiritualidade que converte um fato histórico numa epopeia, conferindo a um emaranhado de vidas trituradas a grandeza de uma acusação de profeta. Sem deixar de ser uma obra expressionista, “Navio de Emigrantes”apresenta-se como uma síntese das conquistas visuais dos últimos séculos, associando a cutilada fria de Brueghel, os frêmitos de Rembrandt, a solene indiferença da inspiração oriental, em especial o mar encapelado e decorativo de Hokusai, ao rigor, pausado e polifônico de Piero della Francesca. É possível apontar nesse quadro a intelectualidade de Cézanne, porém, mais do que tudo, emerge dele o lirismo envelhecido de um coração que sabe resignar-se sem se desdobrar, e é capaz de encarnar, nas linhas e cores de uma composição sem rachuras, o desejo da Justiça. Pode-se afirmar que ao “Grito”, desesperado e solitário, de Munch, corresponde simetricamente esse outro “Grito”, solitário e coletivo, sem acústica, de Segall, onde este consegue por não ceder à ênfase, a estridência das denúncias que paralisam os próprios brutos.

Graças à obra de Osvaldo Goeldi, outra influência expressionista alcança ressonância entre nós: a de Alfred Kubin, ex-membro do grupo “Der Blaue Reiter”. Incidindo no terreno fértil de uma imaginação das mais dramáticas que o Brasil possui, o visionarismo daquele arranca-lhe obras-primas de tensão e angústia existencial. Goeldi aprendera a gravar em 1924 com Ricardo Bambi, recém0chegado da Alemanha. Dessa data em diante fixa-se na xilogravura. Publica, em 1930, o álbum: “Dez Gravuras em Madeira”, com prefácio de Manuel Bandeira. Viaja, a seguir, à Europa expressamente para conhecer Kubin. Anos mais tarde, passa a interessar-se pela gravura a cores por lhe parecer que, sem estas, não evocaria o mundo febril de “Cobra Norato”, poema de Raul Boop. A convite da Editora José Olympio, ilustra diversos livros de Dostoievsky: “Humilhados e Ofendidos”, “Recordações da Casa dos Mortos”, Ö Idiota”, “Luz Subterrânea”, bem como “Martim Cererê”de Cassiano Ricardo e “Lições de Abismo”de Gustavo Corção. Em 1951, conquista o prêmio de melhor gravador nacional na Primeira Bienal de São Paulo. A obra de Goeldi coerente e de uma substância imagética de primeira qualidade, sem desfalecimentos formais, embora, como observou alguém, “Nõ exista nela um tipo de composição ou de estrutura que possa ser escolhido como padrão ou apontado como recorrência mais frequente”(11) assegura-lhe o primeiro lugar no grafismo brasileiro. Por sua moderação no uso do impulso caudaloso, antes atiçando-a, precisamente por reduzi-la a uma sorte de esquema, que permanece palpitante. É lícito identificar-se na obra de Goeldi algo de um classicismo contrariado. Como Segall, Goeldi envolve a solidão e o desamparo das criaturas, e seu mundo específico, interiores e cidades, num véu diáfano, onde fantasia e realidade se conjugam nupcialmente.

(…)


Relação de obras

1 – Mathias Grünewald – “Retábulo de Isenheim” – pintura sobre madeira
2 – Caspar David Friedrich – “Mulher à Janela” – óleo sobre tela
3 – Max Liebermann – “Bar em Brannenburg”- óleo sobre tela
4 – Cândido Portinari – “O Menino do Papagaio” – óleo sobre tela
5 – Anita Malfatti – “O Farol” – óleo sobre tela
6 – Anita Malfatti – “O Homem Amarelo” – óleo sobre tela
7 – Anita Malfatti – “O Japonês” – óleo sobre tela
8 – Anita Malfatti – “A Estudante Russa” – óleo sobre tela
9 – Anita Malfatti – “A Boba” – óleo sobre tela
10 – Lovis Corinth – “Antes do Banho”- óleo sobre tela
11 – Lovis Corinth – “A Ressaca”- óleo sobre tela
12 – Lovis Corinth – “Mulher Nua com Chapéu e Meias”- óleo sobre tela
13 – Alex Leskoschek – “Eternamente”
14 – Lasar Segall – “Aldeia Russa” – óleo sobre tela
15 – Lasar Segall – “Estudo para Família Enferma” – óleo sobre tela
16 – Lasar Segall – “Progrom” – óleo sobre tela
17 – Lasar Segall – “Navio de Imigrantes” – óleo sobre tela
18 – Lasar Segall – “Figura do Mangue Sentado com Vestido Arregaçado” – óleo sobre tela
19 – Lasar Segall – “Campo de Concentração” – óleo sobre tela
20 – Erich Heckel – “Retrato de Homem” – xilogravura a cores
21 – Oswaldo Goeldi – “Fugindo do Cão” – xilogravura
22 – Oswaldo Goeldi – “Noite” – xilogravura
23 – Oswaldo Goeldi – “Peixe Vermelho” – xilogravura a cores
24 – Oswaldo Goeldi – “O Usuário” – desenho
25 – Oswaldo Goeldi – “Cavalos” – xilogravura a cores
26 – Alfred Kubin – “Pesca Fantástica” – bico de pena
27 – Alfred Kubin – “Minha Arca” – bico de pena
28 – Alfred Kubin – “Egito” – bico de pena
29 – Alfred Kubin – “No Gleinkersee” – bico de pena e aguada
30 – Alberto da Veiga Guignard – “Vista do Caminho para Mariana” – óleo sobre tela
31 – Alberto da Veiga Guignard – “Cabeça de Cristo” – óleo sobre tela
32 – Ernst Ludwig Kirchner – “Fábrica em Dresde” – lápis e aquarela
33 – Ernst Ludwig Kirchner – “Estrade de Ferro em Königstein” – lápis e aquarela
34 – Emil Nolde – “A Vida de Cristo” – óleo
35 – Cândido Portinari – “Criança Morta” – óleo sobre tela
36 – Cândido Portinari – “Retirantes” – óleo sobre tela
37 – Cândido Portinari – “Enterro na Rede” – óleo sobre tela
38 – Lívio Abramo – “Operários” – xilogravura
39 – Lívio Abramo – “Guerra-Medo” – xilogravura
40 – Lívio Abramo – “Bombardeio-Espanha” – xilogravura
41 – Käthe Kollwitz – “Auto-Retrato” – nanquim e giz
42 – Käthe Kollwitz – “Auto-Retrato” – litografia
43 – Lívio Abramo – “Série Paraguai” – xilogravura
44 – Ljonel Feininger – “Gelmeroda II – Igreja” – xilogravura
45 – Hans Grudzinski – “Última Ceia VII” – gravura em metal e cores
46 – Ernesto de Fiore – “Guerreiro”- gesso
47 – Ernesto de Fiore – “O Brasileiro”- gesso
48 – Maciej A. Babinski – “Caveiras” – xilogravura a cores
49 – Darel Valença Lins – “O Ciclista na Demolição Escura” – gravura sobre metal
50 – Marcelo Grassmann – “Oficial com Animal Fantástico” – gravura sobre metal
51 – Marcelo Grassmann – “Duas Figuras Fantásticas” – gravura sobre metal
52 – Marcelo Grassmann – “Íncubus e Súcubus” – gravura sobre metal
53 – Alfred Kubin – “O Soldado” – bico de pena
54 – Hansen-Bahia – “Drama da Paixão” – xilogravura
55 – Hansen-Bahia – “Navio Negreiro” – xilogravura
56 – João H. Quaglia – “Bandeirilha” – gravação em metal


Catálogo da Exposição Expressionismo e Arte Brasileira 1984

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