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Universidade Federal do Ceará
Museu de Arte da UFC – Mauc

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Exposição 2004.02 – Iracemas, Morenos e cocacolas – 04/05/2004

Calvário De Iracema

O Instituto de Cultura e Arte e o Museu de Arte da UFC apresentam a exposição Iracemas, Morenos e cocacolas, do artista plástico cearense de renome nacional, Descartes Gadelha, cuja marca mais fremente, além da amadurecida excelência artística, é seu ostensivo destemor. Descartes não sofre medo de expor as feridas abertas de nossa sociedade, não se acanha em cometer paródias, caricaturas, deformações, erotizações de mitos, de símbolos religiosos, de personagens literários e históricos.

Sequer a cruz lhe arrefece o ânimo iconoclasta, ao contrário, inspira-o em uma das telas mais contundentes da exposição, “Crucificada do Amor”, em que contrapõe as significações da cruz – símbolo de aviltamento, antes do cristianismo, e símbolo de salvação, depois da morte na cruz do Filho do Homem – e atualiza o Calvário no locus que, um dia, foi a Praça dos Mártires, palco do derramamento de sangue dos rebeldes da Confederação do Equador, depois Passeio Público, teatro de amores gentis, e hoje, nas palavras do artista, “recanto que acolhe o ocaso da prostituição”.

Neste ano de 2004, em que a Universidade Federal do Ceará dialoga com sua própria memória nas comemorações de seu cinqüentenário de criação e do centenário de nascimento de seu fundador, Prof. Antônio Martins Filho, aliás criador do MAUC, Descartes Gadelha também puxa conversa com o passado e permite-nos assistir ao enriquecedor diálogo entre sua atual exposição e outra coleção que compôs durante os anos 70, 80 e 90 do século passado, De um alguém para outro alguém, fazendo ressaltar, na proximidade da temática entre as duas, algumas diferenças na descrição agonística da sociedade que protagoniza sua última coleção, outras distinções conceituais e de composição artística e uma semelhança imperiosa – a inconfundível marca de seu estilo.

Angela Gutiérrez
Diretora do ICA – Instituto de Cultura e Arte da UFC


O Carisma do Autodidata Descartes Gadelha em “Iracemas, Morenos e cocacolas”

O carismático e autodidata Descartes, pintor e escultor, apresenta em “Iracemas, Morenos e cocacolas” tamanha versatilidade que não corre o risco de se esvair, de redundar no ridículo do nada. Em Descartes tudo é um elo dramático e/ou caricatural, mas sempre um clímax resultante da intensificação progressiva na temática e na estilística das correntes ou escolas: é um ‘continuum’ em crescendo desde os anos 1970 com “Descartes Gadelha”; em 1983 com “Canindé: Canaã Nordestina”; em 1989 com “Catadores do Jangurussu”, seguida da mostra “De um alguém para outro alguém” (1991) e mais da apoteótica “Cicatrizes Submersas: uma ilustração de Canudos” (1997). O conjunto de obras, 2004, “Iracemas, Morenos e cocacolas” traz à mente um Franz Post repintado a cobrir séculos de Religião na floresta tropical brasileira. Calvinismo a encobertar desnudas ofensas imaginárias às Iracemas do Brasil Colonial; a encobrir a agonia da humilhação feminina frente à rudeza do colonizador português, depois holandês, empós francês, no despontar das Américas. A afronta se inicia com Moema, avança com Iracema, se espraia com as órfãs da Colônia e se multiplica face à complacência real. A corrente não se desfaz com o passar dos donatários, nem se quebra diante das atitudes cristãs jesuíticas. A malsinada corrupção se estende da Colônia ao Reino, se difunde do Império à República. A condição da mulher brasileira se transforma em dejeto diante de um imperialismo conspícuo e à mercê de um neoliberalismo malafamado, se propaga diante da incapacidade de conter desmandos e, aliada à ausência de controle, é fomentada, se alavanca, incentivada com turismo sexual e adoção internacional de fachada e se alastra ‘de faccia’. Significativas são as telas Iracema e Moreno – cena XXIX; Pela Praia de Iracema – cena XX; Festa da Vitória – cena V – Crucificada do Amor – cena XXVIII.

A temática do título enfatiza o período da 2ª Guerra Mundial, anos 1940 da República do Brasil. A brasileira pacífica, a cearense de corpo moldado pelo encantamento de curvas sensuais, a exímia representatividade da mulata e da mesclagem generosa de raças – tanto quanto da mistura do ouro das Bandeiras, da abundância do verde-floresta, como o ‘azure’ dos mares ondulantes. Tudo é cobiçado, tudo é confiscado. Ao final, a miséria, a fome e as imaginativas maneiras de ‘enganar’, de ‘matar a fome’; ou a invencionice de um teto no aproveitar papelão, plástico inútil, e restos apodrecidos de engradado descartável. Fome, miséria, dor, degradação, lenocínio, autocídio, morte tornam-se maneiras imaginativas de manipular a necessidade de busca de identidade e da tão desejada inclusão na sociedade maior. Veja-se Loura – cena XVIII; Mãe pela Noite – cena XXIII; No pé do telefone – cena XXVI. Com a inclusão social, mentes e corpos desejosos de saúde, educação, lazer – direitos fundamentais e constitucionais – se esvaem na ânsia de alçar vôos para pairagens mais seguras. Aquilo antes maldição, hoje se torna objeto de cobiça: atrair o olhar estrangeiro, o passante de falar diferente, o possuidor da moeda diversa, quiçá, bem mais valiosa. Esses sentimentos, o pincel de Descartes os firma em: – Esquina como ponto de pegação – cena VI; – Esquina 2 – cena XVII; – Retrato de viagem – cena IX; – Let’s go – cena IV; Dia de Turista – cena VIII. A armadilha está escondida sob a égide de um movimento pró-melhoria de renda, levado a efeito por atravessadores, de preferência na orla marítima. Esbugalhar os olhos nas telas. Promenade de Voyageur Sensuel – cena XIII; Retrato de viagem – cena IX; Pela Praia de Iracema – cena XX; A madame – cena XXV. Hoje, NAUFRAGADA a Praia de Iracema qual navio brasileiro bombardeado ao aflorar da Guerra no Atlântico, restam lembranças, recordações, pensamentos e, sim, pincéis. Debruçar-se nas telas: Estoril anos 40 – cena XXIV; Convite para o filme – cena XXVII; Festa da Vitória – cena V; Olhares – cena XV; Pela Praia de Iracema – cena XX. Guerra vermelho-sangue em país verde-amarelo, em pacífica praia, areia moldada pelo vento, maré alta de beleza ímpar – praias e dunas invadidas por ontem Soares Moreno e empós, nos anos 1940’s, pelos Bill e Tom: Browns, Douglas, Johnsons, Peters, Rogers, Smiths, Simpsons. Desgarrados, desvinculados brutalmente de suas raízes face ao alistamento militar, jovens ‘yankees’, antes temerosos, aqui, nas praias alencarinas abraçam a armadura, a cobiçada couraça de que necessitam para melhor suportar os horrores da guerra, mediante folga com dias esplendorosos e noites ergásticas a servirem de alento – uma calmaria inesquecível em miraculoso oásis.

Jovencitas reprimidas por anos de exclusão familiar se deparam, qual faísca estonteante, frente à presença norte-americana na cidade – uma presença que, insidiosamente, vai mudando os hábitos, os costumes, os pensares e os agires: ‘folkways and mores’. Já os galãs e namoradinhos locais, contidos pela tradição da virgindade feminina, se vêem substituídos pelos audazes ‘teens’ com a sua masculinidade agora afirmada. Tem mais: toda uma parafernália de utensílios, bebidas, alimentos, louçaria, “pots and pans”. De um tudo Fortaleza é invadida e inflacionada. Na tela, Descartes constata e perpetua a embrulhada de corpos e de “teréns”. Atenção à empolgação de noite de luar de jovens meninas com o ‘marine’ e algum ‘soldier’ num jeep: Promedade de Voyageur Sensuel – cena XIII; Retrato de Viagem – cena IX. Praia de Iracema dos amores perdidos, dos sonhos inalcançados, do balanceio romântico e enluarado. Da Missa do Galo, dos becos tranqüilos, das ruas limpas e de traçado retilíneo.

Descartes é monumental no captar juventude, beleza, transparência de sentimentos. A tela da menina-moça lendo carta de amor distante, a do jovem soldado a convidar moça para o cinema são duas preciosidades dessa Mostra do Impressionismo nas cores e nos traços Renoir. O chá a ser servido (ou seria água de coco?) lembra Toulouse Loutrec. Viva a mixagem impressionista-expressionista em Estoril Anos 40 – cena XXIV; Convite para o Filme – cena XXVII.

Fim de guerra. Sim e não. Surgem o perambular de olhinhos verdes ou azuis no Pici, a tez branquinha das menininhas ao longo das praias citadinas. Sim. Noutras palavras, gente nova de cabelo ruivo para ficar, crescer ou minguar. Ouve-se então o falar cochicho do abortar de crianças no salvar a honra familiar. Aqui, os olhos se deparam com a tela Fábrica de Anjos – cena XXXI. Surrealismo fantástico no seu clímax. A calma aconchegante é esmagada. A cidade muda. Hábito e rotina sofrem impactos de ordem econômico-financeira e cultural. ‘Bônus de guerra’ levam à falência arrojados empreendedores. Os esbulhos possessórios atravancam os direitos constitucionais. Acesso à justiça? O que é mesmo?

A sociedade preconceituosa, tradicionalmente ligada ao continente europeu, se junta ao marginalizado descontente com aquela invasão de privacidade recatada e cognominam as garotas fáceis de ‘As cocacolas’. Rotuladas. A rotulação social, ou “the theory of social label’ estudada em Sociologia da Educação. O rótulo é até hoje visto com algum preconceito na estória da cidade de Fortaleza. Nesse trânsito de idéias e costumes, Descartes transpõe em telas cartograficamente equilibradas, a sua invulgar, mas oportuna, exposição enquanto visionário histórico contumaz.

É isso. A historiografia brasileira vai se espumar de raiva ao tentar traduzir do impresso (no lápis e papel ou no digitar virtual) todo o levantamento de ‘o por detrás’ de um visual fortuito, de uma situação passageira captada pelo lapidar autodidatismo de Descartes.

Já o crítico social, a autora, se junta aos pincéis, às tintas das correntes realistas, com respingos de impressionismo, forte expressionismo, rigoroso surrealismo e mais Escolas com o objetivo supremo, primacialmente político-antropológico, de apontar o êxtase, o orgasmo, a agonia, a morte. Finalidade maior: ressaltar a problemática sexual ora guindada a âmbito internacional. Praia de Iracema, antes área privilegiada, hoje reduto de comportamentos abusivos – câncer aberto na sociedade cearense. Exéquias.

Descartes é, às vezes, estigmatizado pelos seus lampejos criadores de uma artística renovada. E a autora dessa resenha interpretativista também o é por conta de sua audácia em detectar fraturas sociais e perscrutar idiossincrasias. E antropologicamente, remoer descaso, infidelidade, atrevimento, identidade não resolvida, máscara. A bem pensar, esse ‘vernissage’ “Iracemas, Morenos e cocacolas” é um pós-baile de máscaras: descoberto o personagem os culpados são apontados.

Justiça? E daí? – Cai no descaso, mas, por favor, por instantes, que se fixe no olhar do leitor e do visitante de ‘vernissage’ ímpar por enquanto atual, intitulado ou reentitulado turismo sexual, família transviada, saúde esquecida, educação encolhida, pudor apagado, direitos fundamentais esbofeteados, lazer transviado, direitos humanos sacrificados. Arte deflagrada, vem a questão ser ou não ser. Tiros com balas e beijos? Amor e escárnio? Bonança e tempestade? Justiça e crueldade? Criminalidade e absolvição? Seja o que o leitor ou o observador da arte prefira, contanto que alguma coisa, algum sentimento sacudam as suas mentes e idealizem alguma formatação de melhoria social, ambiental, humanística.

Como você, Descartes, consegue ‘enquadrar’ e passar a certeza viva do extrapolar linhas, curvas, cores num abraço transcendental?

Zélia Sá V. Camurça, Ph.D.
Advogada, OAB-CE
Sócia Efetiva, IC-HGA


Iracemas, Morenos e cocacolas

O conjunto de quadros forma uma peça inteiriça, unitária. Um diagnóstico plástico do submundo do meretrício em seus aspectos principais.O Baliza Entretanto, cada quadro é uma cena específica do drama de cada um. A complexa personalidade humana é definida em duas plataformas antagônicas. Os dois segmentos, positivo e negativo, resultam em uma bipolaridade irônica. Portanto, nota-se, em todo o trabalho, a presença do antagonismo: alegria-tristeza, amor-ódio, vingança-perdão, miséria-riqueza, contido no ser e não ser da alma humana. Os quadros complementam-se através da contradição: aproximam-se, interpenetram-se, rejeitam-se, amam-se e odeiam-se. É o inspirar e expirar do nascer e morrer na mecânica da vida. Se o conteúdo da obra é caricatural é porque a vida é uma caricatura da própria vida.

Descartes Gadelha


Descartes Gadelha

(Fortaleza – CE 1943)

Desenhista, pintor e escultor. Participou de importantes mostras coletivas, destacando-se “A Paisagem Cearense”, no MAUC-UFC (Fortaleza – CE 1963), “Pintores do Nordeste”, no Museu do Unhão (Salvador – BA 1963), “Lirismo Brasileiro” (Tel-Aviv 1965), “O Circo”, no paço das Artes (São Paulo – SP 1978) e “12 Artistas de Seis Países Latino-Americanos”, na Casa do Congresso de Angostura (Caracas – Venezuela 1982). Obteve prêmio no XIV Salão Municipal de Abril (Fortaleza – CE 1964), nos I e II Salões Nacionais de Artes Plásticas do Ceará e no 1º Salão de Artes Plásticas do BNB-Clube, todos em Fortaleza (CE), nas décadas de 70 e 80. Individualmente, realizou diversas exposições, destacando-se em importância: Galeria Goeldi (Rio de Janeiro – RJ 1966), Galeria Samambaia (São Paulo – SP 1968), Instituto Goethe (Salvador – BA 1974) e as expressivas mostras “Catadores do Jangurussu”, no MAUC-UFC (Fortaleza –CE 1986), “De um Alguém para Outro Alguém”, também no MAUC-UFC (Fortaleza – CE 1990) e a mega-exposição “Cicatrizes Submersas” – com mais de 100 pinturas a óleo de média e grande dimensões, além de esculturas, cerâmicas, gravuras e desenhos, retratando a saga do beato Antônio Conselheiro nos sertões do Nordeste do Brasil e seu epílogo em Canudos -, realizada no Palácio da Abolição (Fortaleza – CE 1997) e posteriormente, em 1999, na reinauguração do Museu de Arte da UFC, local onde as obras se encontram, incorporadas ao acervo do museu por doação do próprio artista. Numa linguagem expressionista, Descartes Gadelha retrata em sua obra a cultura, a religiosidade e os problemas sociais comuns ao Ceará, sua terra natal, e ao Nordeste do Brasil.

(Fonte: Firmeza, N. & Montezuma, L. Dicionário das Artes Plásticas do Ceará. Fortaleza: Oboé, 2003)

 

 

Visita à exposição:

Universidade Vale do Acaraú – UVA

EEM Adauto Bezerra

EEM Adauto Bezerra

História e Serviço Social – UECE

Escola Ambiental Semear Adolescente

 

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