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Universidade Federal do Ceará
Museu de Arte da UFC – Mauc

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Exposições 2023.10 – Descartes Griô Profeta – 17/06/2023

Descartes Griô Profeta

(Descartes Gadelha 80 anos)

Descartes: – “O crepúsculo passa. Ninguém percebe. Na fome não existe poesia.”

Eu: – “Não, Descartes, toda poesia vem da fome! Sem fome não há arte, nem o belo, nem o sublime (= confrontar o terrível e sair ileso!). É essa a perversão que sustenta toda a existência humana e toda arte. Já dizia a sibila Diotime a Sócrates que Eros (força de vida!) é filho da penúria com a abundância. Toda criação nasce do desejo, portanto, da falta: a pobreza é a mãe da invenção, alerta o provérbio. Qualquer poiesis advém da luta constante entre contrários, como na tua pintura: tuas figuras, teus temas, tuas técnicas, tuas cores, teus gestos. Mas sei que ironizas. Tua pintura contradiz-te. Com chorume, tinta fétida, ácida e mortal, pintaste nossas misérias e mazelas, o limbo ao qual a cidade, por não saber partilhar, por não ser fraterna, por não suportar a alteridade, relegou tantas almas; uma política de morte; pintaste – releve a paráfrase dejá vu e óbvia, mas ainda justa – nossas flores do mal; e, vê, pois é exatamente aí,  na comparação gasta, que jas tua fina ironia: na gênese do étimo, chorume vem de “chor”, uma forma arcaica e dialetal de “flor” e referia-se à flor do leite, à nata (a nata do lixo?), depois, por derivação, à riqueza, opulência, abundância… A fartura da tua arte – “Tudo aqui é excessivo, chocante, uma sucessão de socos no estômago, que nem todos aceitam de bom grado receber”, como disse de ti Gilmar de Carvalho –, sem estetizações fáceis, recupera a potência política daquilo que o modo de produção e consumo capitalista considerou – humanos, animais, paisagens, objetos, modos… – resto, lixo, chorume. És o profeta daqui; de hoje. Falas de… digo, pintas, não um futuro distópico, apocalíptico, como fez o beato em Canudos, mas as já ruínas (o lixão?) do presente; a profecia de Lourenço perfeita.

“Em verdade, vos digo, nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4, 24), bíblico, mas é um sentimento ambíguo que a cultura nutre pelos que lhe mostram o espelho de Oxum, reflexo sem deformações da alma, para o bem e para o mal. Não refusa a imagem por distorcer o refletido, porque mente, todavia porque a figura que mostra é hiper-realista. Mais que paúra, amalgamando medo e reverência, teme-os.

Tua obra é terrível!

Só se teme o respeitável. Os tambores, o maracatu, a música, a pintura, a prancheta, a poesia, a fé, a experiência – vórtice do todo vivido; encarnação – te autorizam. Trata-se uma autoridade adensada pelo tempo (oitenta anos não são oitenta dias…), pelo compromisso com a memória, os saberes ancestrais e sua transmissão generosa, pelo querer o bem-comum; performativa, na medida em que, estribada na tradição, produz o presente (Zumthor). Isso faz de ti um griô (pote de saber) do Ceará.

Profetas, contudo, não desejam nem realizam o que vaticinam. Fosse assim, não passariam de urubus em torno da carniça. Nem sua voz é um pio de rasga-mortalha, ave agourenta. O futuro profético diz mais do presente. É uma convocação do que precisa ser feito agora para adiar o fim (Krenak); um clamor por justiça: caô cabiecilê!; um gesto de esperança.

Toda tua obra é isso, Descartes, um ato de fé em nós!”

Wellington Jr. (Tutunho)

Curador

 

[Em Descartes Griô Profeta, exposição comemorativa aos oitenta anos do artista cearense Descartes Gadelha, o Mauc expõe obras doadas ao museu pelo artista entre os anos de 1970 e 2018. Diante do recorte inevitável, a seleção privilegiou pinturas e esculturas em detrimento de estudos, desenhos, gravuras. As coleções “Caldeirão de fé”, “Cicatrizes submersas”, “Catadores do Jangurussu”, “Cheiradores de cola”, “Iracemas, morenos e coca-colas”, “De um alguém para outro alguém” compõem um atlas mais amplo possível da produção de Descartes Gadelha, desde os anos de 1970 até 2018, a partir exclusivamente do acervo do Mauc. A opção por não identificar as obras ao longo do percurso expositivo propõe uma relação mais imediata com as obras e a expografia, aqui, baseada em processos de obliteração e acumulação: Capela Sistina, salões de arte oitocentista, ateliês, igrejas barrocas, paredes votivas, carnaval, a banca do camelô!]

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